Anderson Barreto Moreira
Tanques nas ruas, repressão, aeroporto cercado, presidente refugiado em embaixada: tudo isso poderia ser mais uma cena dos golpes militares tão comuns na América Latina dos anos 1960-1970, mas era Honduras em 2009. O golpe foi o primeiro de uma série que derrubou a maioria dos governos progressistas eleitos no início dos anos 2000. Os métodos variados de execução desses golpes são conhecidos: quase todos combinaram elementos da chamada “institucionalidade” e de fora dela, como no Brasil (2016) e Paraguai (2012), ou rupturas mais “clássicas”, como Honduras e Bolívia (2019). A partir de então, as diferentes tonalidades do progressismo foram sendo substituídas pela extrema-direita monocromática ultraneoliberal. Porém, 12 anos depois, com um cenário desolador de miséria, desemprego e autoritarismo agravados pela pandemia, a América Latina ensaia novamente alternativas para sair deste pesadelo. Ainda não é uma virada, mas se respira ares melhores.
A recente vitória de Xiomara Castro de Zelaya em Honduras é mais uma mudança importante no cenário político. Primeira mulher eleita na história do país, está propondo retomar de maneira mais radicalizada a alteração de algumas estruturas do país centro-americano. Lembremos que a aproximação com países como Venezuela e Bolívia e a proposta de realizar uma consulta popular para a abertura ou não de uma nova Constituinte levaram ao golpe e expulsão dela e de seu marido, o então presidente Manuel Zelaya, do país em 2009. Xiomara anunciou 30 propostas para os primeiros 100 dias de seu governo, dentre elas a derrogação das leis aprovadas durante os governos golpistas; uma nova consulta popular para organizar e eleger uma nova Assembleia Nacional Constituinte; recuperação das empresas estatais privatizadas, bem como aeroportos, portos e rodovias; auditoria internacional da dívida interna e externa; renda universal para famílias pobres; justiça contra os mandantes e assassinos de Berta Cáceres e Margarita Murillo, ambas lideranças populares assassinadas após 2009. A implementação destas medidas não ocorrerá sem a constante mobilização popular para enfrentar a reação da burguesia hondurenha e do imperialismo.
Perú, Bolívia e Argentina já sentem a mão pesada sobre seus governos, que se conjugam com questões internas e dificuldades de organização das forças de esquerda. O governo de Pedro Castillo no Perú vive sob constante cerco da direita. Não foram poucas as indicações ministeriais que tiveram vida curta por serem consideradas “radicais” – um exemplo disso foi Héctor Béjar, então ministro das relações exteriores, que foi obrigado a deixar o cargo por ter afirmado que o país sairia do Grupo de Lima. Após meses, Castillo conseguiu a aprovação de seu gabinete pelo parlamento e escapou recentemente de uma tentativa de abertura de impeachment. Não significa que agora navegue por mares tranquilos, pois a nova investida da direita peruana passa por ativar um mecanismo constitucional para declará-lo “moralmente incapaz”. Junto disso, uma crise no Partido Perú Libre, que elegeu o presidente, tem tensionado os vários setores que compõem o atual governo. Apesar disso tudo, algumas metas importantes prometidas para os primeiros 100 dias de governo estão sendo cumpridas como, por exemplo, ampliar a vacinação contra a Covid no país – hoje por volta de 70% de sua população está vacinada – bem como a implementação de um programa de renda básica para os mais pobres. Diante do histórico do país e da conjuntura atual a própria sobrevivência do governo já pode ser considerada uma conquista.
Na Bolívia, o primeiro ano do governo de Luiz Arce enfrentou constantes tentativas de golpes e assassinato do presidente. Após aprovar uma lei sobre ganhos ilícitos e financiamento do terrorismo, o governo se viu diante de uma reação golpista, com paralisação parcial da economia promovida pelos mesmos setores que derrubaram Evo Morales. Certamente se sentiram ameaçados no financiamento de suas atividades ilegais que recebem dinheiro por caminhos no mínimo obscuros. O governo revogou a lei, mas foi a mobilização de 29 de novembro, com mais de um milhão de pessoas em várias partes do país, que enterrou a nova aventura golpista. Mais uma vez se comprovou que com a mobilização de massas é possível alterar correlação de forças.
O governo de Alberto Fernandes na Argentina mediu sua força nas urnas e reverteu parcialmente a derrota que se desenhava nas primárias de setembro. Nas eleições legislativas de novembro o governo manteve a maior bancada na Câmara, mas perdeu o Senado. Após uma queda de 10% no PIB em 2020 devido a pandemia, o país projeta um crescimento por volta de 9% em 2021. Porém, a desvalorização do peso, inflação perto dos 40% e aumento da miséria tem suas raízes no estrangulamento promovido pelo sistema financeiro internacional que impõe duras condições de financiamento e pagamento da dívida. Os próximos dois anos serão decisivos para a proposição de alternativas ao impasse que o país se encontra.
A vitória no Chile do candidato da esquerda Gabriel Boric sobre de José Antônio Kast – candidato da extrema-direita chilena que acenava sem pudores para a ditadura de Pinochet e para Jair Bolsonaro – é, sem dúvida, algo histórico. O fato de Boric ter sido um dos líderes da revolta estudantil de 2011 diz muito das origens desse resultado. Após 2019, após realizar a maior rebelião popular em décadas e arrancar uma nova Assembleia Constituinte capaz de enterrar a Constituição de Pinochet, a esquerda parece ter encontrado uma forma de organização que foi capaz de reverter a derrota no primeiro turno. O presidente eleito afirmou em julho que, se eleito, faria com que o Chile – berço do neoliberalismo no continente após o golpe de 1973 – seria também seu túmulo. As expectativas são enormes: o mais jovem presidente eleito, com 35 anos, discursou após a vitória propondo câmbios estruturais, com acento no combate às mudanças climáticas, respeito aos povos originários, fortalecimento das lutas dos diferentes setores da classe trabalhadora e do povo pobre. Uma multidão acompanhou e celebrou durante a noite da vitória, prometendo manter a mobilização para a arrancar às mudanças necessárias.
O ano de 2021 se encerra com exemplos de processos e vitórias marcados, primeiro, pela retomada da radicalidade necessária para sair da conjuntura desfavorável que nos encontramos. Segundo, pela diversidade de possibilidades e formas de lutas e resistências para impor derrotas à estrutura econômica, política e estatal cada vez mais dependente de governos autoritários ou neofascistas. Em todos se demonstrou que sem unidade e mobilização popular nenhuma vitória estará garantida. A burguesia e o imperialismo já não tem mais pudores – se é que um dia tiveram – em sabotar a própria democracia liberal-burguesa da qual se valeram. Os golpes já não parecem mais exceções e sim a regra. Isso vale para o Brasil também. Como diria Allende, as alamedas da História voltarão a se abrir. Que aprendamos com Nuestra América.