SOCIALISMO, VOLVER? OS DRAMAS DA CIÊNCIA POLÍTICA COM A CRISE DA ORDEM LIBERAL

Rodrigo Lentz*

Aos poucos, de forma muito tímida, recomeçam os debates acadêmicos sobre capitalismo, anticapitalismo, pós-capitalismo e, acreditem, até sobre socialismo e anarquismo como projetos de outras sociedades. No caso que “me toca”, a ciência política, são temas muito sumidos – conforme atesta meu “método indutivo-dedutivo” – e que agora, com as transformações geopolíticas em curso, batem à porta de nossas estratégias de pesquisa.

Mas o trabalho de reorganização será longo. É preciso considerar que boa parte da produção teórica de nossa ciência foi capturada pela hipnose da democracia liberal-pluralista. Desde a década de 1990, a virada consensualista da “terceira onda” se tornou não apenas hegemônica, mas quase uma unanimidade na academia. É claro que houve um suspiro para além do liberalismo com os modelos de democracias participativas, por exemplo, mas até mesmo essas sobrevidas alternativas sucumbiram ao encanto da qualidade das democracias “consolidadas”, onde “as instituições estão funcionando”.

Além disso, a alta fragmentação dos problemas de pesquisas, em que a especialização foi o caminho para entender a sociedade complexa, deixou manca a produção de conhecimento sobre as relações de poder político. Depois de arquivado o estruturalismo essencialista, o pós-estruturalismo não logrou encantar mentes o suficiente para resgatar os temas macroestruturais ao centro da mesa. É bem verdade que as críticas feminista e antirracista são protagonistas em apontar para as estruturas, em que o poder de agência importa, mas o segundo plano conferido à questão de classe ainda predomina – apesar da instigante teoria interseccional. A própria “crise” da definição do que é classe social hoje, com as aceleradas mudanças nas relações de produção, contribuiu para seu ocaso. Sem falar na burguesia, essa sumida. Eis a grande celeuma social contemporânea que confronta, cada vez mais com a coerção social, privilégios, opressões e injustiças estruturais de raça, gênero e orientação sexual minimizadas no passado. Como recolocar a centralidade das relações de classe sem repetir o estruturalismo essencialista?

Nessa sacola de desafios também pode entrar a reconciliação entre ciência política e relações internacionais. Afinal, o consenso capitalista reduziu a ciência política em geral a seus problemas específicos, muito ligados aos direitos “civis” e políticos, e suas instituições e cultura, mas distantes dos direitos sociais – ainda que tenham incorporado as dimensões ambientais e culturais. As relações de poder político no mundo sob olhar dos territórios nacionais – outra sumida, a geopolítica – e a relevância da economia política parecem ser elementos inevitáveis nas próximas décadas. O que significa para a política o atual estágio do capitalismo, o financeiro? Corporações globais, sobretudo de comunicação e tecnologia, importam para a ciência política? Para não dizer que não falei de flores, a teoria de guerra contemporânea é outro não-lugar. Afinal, por que a virada polemológica, que reaproximou a ciência militar da ciência política, simplesmente é ignorada em nossa bolha acadêmica?

Outro assunto, ainda muito na encolha, é o realismo político. Há uma grande distância entre a moral, com suas concepções de justiça, e as relações de poder concretas, materiais e simbólicas. O pragmatismo político, voltado para os resultados imediatos, a conquista e a manutenção do poder hoje, são típicos sintomas da centralidade eleitoral do consenso liberal-pluralista. Aqui há três pontos que sempre me instigaram. Primeiro, o fato de que a ciência política praticamente não estuda sobre análise de conjuntura, correlação de forças, cenários prospectivos, estratégia e tática política, mensuração das relações de poder atual e em potencial dos centros de poder da sociedade. Posso ter faltado aulas, perdido leituras e pagado o preço de não ser graduado em ciências sociais, mas saio do mestrado e do doutorado sem uma mísera disciplina especial sobre esses temas. O segundo, é a relação entre realismo e moral, quem sabe ética e política, como outro não-tema do campo. Quando iremos debater a corrupção, entendida como desvio de bens públicos para benefício individual, como um fenômeno capitalista? E superar a simples oposição da falsa máxima atribuída à Maquiavel, de que os fins justificam os meios? Moral, justiça e eficiência de resultados políticos seguem com a visão predominante do cristianismo, bastando a consciência individual e milhares de brinquedos institucionais, em grande parte usados como instrumentos de “moderação” da soberania popular.

O terceiro é o horizonte temporal, especialmente uma interpretação histórica das relações de poder político. O capitalismo é algo relativamente novo, coisa efetivamente do século XIX. Antes disso, a humanidade não estava condenada a ele e tampouco estaremos para sempre. É certo que, muito menos, festejaremos seu fim no próximo carnaval da vacina, mas a ciência política precisa ter um olhar histórico. Quer dizer, jamais pode trabalhar com imutabilidades e, menos ainda, fatalismos. Aqui nem me refiro à fortuna da incerteza e do inesperado, a grande metade de nossa área de conhecimento. Mas sim a horizontes mais largos no tempo, compatíveis com grandes objetivos políticos da humanidade orientados por sua experiência histórica. É curioso que não tenhamos refletido sobre evolução, desenvolvimento, progresso e ordem na ciência política, apesar dessas consignas estarem cotidianamente na boca da política, seja ela oficial ou não – e base do pensamento militar que hoje está no poder, nos surpreendendo. Alguém sabe por que tanta gente, de direita e de esquerda, mobiliza o termo “progressista”? Quais são as diferenças e as semelhanças? Qual a crítica contemporânea da ciência política a esse evolucionismo, que vai muito além do campo econômico?

Por falar nisso, por que abandonamos o debate sobre identidade nacional? Ano que vem teremos 200 anos de nossa “independência”, quando deixamos de ser oficialmente uma colônia portuguesa. As noções de soberania nacional, defesa nacional, desenvolvimento nacional, Estado nacional, das instituições nacionais e, sobretudo, do povo brasileiro estão estagnadas na década de 1980. Afinal, quem somos enquanto Nação? Voltar a produzir uma nova teoria sobre o nacionalismo, com o grande acúmulo crítico de três décadas de domínio do liberal-pluralismo, será um imperativo conjuntural das próximas décadas. Nesse processo, para chegar nos símbolos nacionais, me parece inevitável um reencontro crítico e doloroso com nosso passado absolutamente presente. Desconstruir os mitos fundadores nacionais, que estão nas entranhas da organização social brasileira, é labuta geracional de grande monta. Mas precisamos começar, para ontem.

Essa reelaboração sobre o passado, que promova um teste de realidade, uma elaboração do luto e uma reconciliação com a experiência traumática capaz de projetar outro futuro, também vejo como necessária para as experiências socialistas e comunistas. Com a queda do muro em 1989, tudo e qualquer experiência histórica assim caracterizada virou sinônimo de ditadura, autoritarismo, totalitarismo e outros derivados antidemocráticos. Voltar a estudar essas experiências, com o devido rigor crítico de suas práticas, sem passar pano ou relativizar violações sistemáticas aos direitos humanos, me parece outra condição para construir novos horizontes “pós-capitalistas”. As tensões ainda mal resolvidas entre liberdade e igualdade, soberania popular e representação, maioria e minorias políticas, propriedade privada e propriedade coletiva, papéis do estado e da sociedade nessas experiências podem fornecer, com as profundas mudanças globais em curso, novas estratégias e projetos políticos que superem o capitalismo.

Por fim, um último ponto. Há imensos muros de comunicação entre as elites acadêmicas e políticas (em grande parte da classe média), de um lado, e o “povo”, de outro. O fato de que entendamos nossas teorias justas, corretas, urgentes, em nada as tornam compreensíveis e persuasivas para os 19 milhões que não terão janta hoje à noite, para as 14 milhões de pessoas desempregadas, para os 34 milhões de subempregados, para as 7 milhões sem moradia. Da mesma forma, para as camadas da classe média, tanto ou mais conservadoras do que a classe pobre brasileira. Descobrir como se fazer entender e convencer o povo, inclusive para as organizações políticas, implica em abrir os ouvidos e os olhos. Conhecer nosso próprio povo, suas mazelas, mas também sua sabedoria e lindeza, seria um grande passo.

Em suma: precisamos voltar ao estudo de Estados nacionais e regimes políticos. Democracia é muito mais do que um governo, diz respeito a um projeto de sociedade que supere a incapacidade histórica do capitalismo em garantir igual liberdade a todos. Em nosso caso, uma outra sociedade nacional, com e apesar do mundo. E a ciência política precisa tomar parte nisso.

*Advogado, doutor em ciência política e pesquisador sênior do Instituto Tricontinental Brasil

rodrigolentz@gmail.com

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