Como andar numa floresta em chamas?

Anderson Barreto Moreira

O novo governo brasileiro terá um desafio gigantesco nos próximos 4 anos: reposicionar o Brasil num sistema internacional em transição repleto de focos de conflito de alta intensidade, para além da guerra entre Rússia e “ocidente” que se desenrola em solo ucraniano. O próprio ex-chanceler, e agora assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim, afirmou em entrevistas que o contexto geopolítico que o governo atual enfrentará é muito mais complexo do que há 20 anos, quando Lula assumiu pela primeira vez. Essa tarefa será crucial, inclusive para derrotar de vez os setores golpistas que rejeitam um projeto de integração latino-americana, os BRICS e tudo mais que retire de vez o Brasil da condição de subalterno do império estadunidense.

O primeiro grande desafio do governo é o mesmo de boa parte do planeta: como enfrentar os impactos da guerra e estabelecer relações diversificadas com as potências que estão diretamente implicadas na guerra – Rússia, China, Estados Unidos e Europa via OTAN? Apesar dos noticiários que já quase nada dizem, quase sempre apenas anunciando uma “grande virada” em favor da Ucrânia, no mundo real o conflito segue feroz e com escaladas constantes. A última foi o anúncio dos Estados Unidos do envio de 30 tanques de ponta, junto com Alemanha e outros países da OTAN que enviarão tanques de última geração para a Ucrânia com a garantia de que isso será decisivo numa suposta vitória do ocidente. Mais uma vez, os russos afirmam que isso só confirma o já há muito dito: que a guerra é entre o ocidente e a Rússia, e que esta última fará o necessário para garantir sua existência.

O fato é que o envio de tanques é apenas mais um anúncio de efeito moral do que uma mudança na estratégia militar: os tanques levarão meses para serem entregues e somados não chegam a 200. Além disso, necessitam de milhares de dólares em manutenção diária e equipes altamente treinadas, o que na Ucrânia já não é mais possível depois de um ano de guerra, da destruição de boa parte das estruturas militares e da morte de centenas de milhares de soldados. No fundo, o que mantém a existência do conflito é o interesse dos Estados Unidos em desgastar a Rússia e a corrupção endêmica na apropriação dos bilhões de dólares destinados para a guerra que levaram essa semana à demissão de parte do alto escalão do governo ucraniano e de governadores de algumas regiões. 

Um segundo desafio do governo brasileiro está diretamente ligado ao primeiro: como se inserir no dinâmico processo encabeçado pela China, popularmente conhecido como “Novas Rotas da Seda”, que já inclui mais de 150 países? O governo chinês retirou as restrições relacionadas à política de “covid zero” assumindo os riscos que isso implica, mas com o foco na reabertura do país e seus impactos na economia. Além disso, tem deixado claro sua posição crítica em relação aos Estados Unidos e às constantes ameaças de conflito, seja em Taiwan, seja alimentando com armas e dinheiro a guerra na Ucrânia ou promovendo uma verdadeira guerra comercial e tecnológica contra a China ao impedir a venda e acesso aos semicondutores. Se com isso os Estados Unidos pretendiam enfraquecer a China, ou afastá-la da Rússia, o efeito foi exatamente o contrário. Múltiplos fóruns e cúpulas têm ocorrido nos últimos meses ampliando não apenas a aliança sino-russa, mas também uma integração de vários polos euroasiáticos, com atores de peso envolvidos como Indonésia, Irã, Índia, países do Golfo Pérsico e Ásia Central, Turquia e outros. Um movimento em direção à África também já é visível em países como a África do Sul, Mali e Burkina Faso.

Um terceiro desafio para o novo governo é a própria integração da América Latina diante desse cenário. A China já é a maior parceira econômica de muitos países da região, enquanto a Rússia tem peso na área militar em alguns. Os Estados Unidos já não conseguem ter o mesmo peso do passado, o que não significa que não tenham fortes posições na região que permanentemente tensionam internamente os países para adoção de posturas mais agressivas em relação à aliança sino-russa e favoráveis ao “ocidente”. Porém, com as crises social, econômica, política e ambiental que têm assolado a região e cobrado um alto preço não será possível alianças apenas em supostas “bases comuns civilizacionais” como quer o ocidente. A primeira viagem internacional de Lula para a Argentina demonstra que há espaço e caminhos em meio às  pedras: os encontros com líderes sul-americanos, proposta da criação de uma moeda comercial do Mercosul e a construção de um gasoduto Argentina-Brasil são os primeiros passos e um importante sinal de que podemos seguir um caminho independente que permitirá maior margem de manobra no cenário atual.

Um quarto e último desafio, mas não menos importante, é a relação do Brasil com os Estados Unidos. Tanto o governo do golpista Temer quanto o de Bolsonaro foram marcados por uma postura de vassalagem, vide a questão da implantação do 5G no país e a pressão estadunidense para a exclusão da China do processo. Reverter essa política é essencial não apenas para que o Brasil tenha mais capacidade perante os Estados Unidos, mas também perante o mundo. Não será pequena a pressão do governo estadunidense para que o país adote posições mais duras em relação à Rússia, mas também em relação à China. Ainda que o governo Biden seja um dos mais irresponsáveis no plano interno – com uma grave crise social atingindo boa parte da população – e externo – ao alimentar uma guerra altamente perigosa – não pode ser considerado um governo fraco. 

Crise climática, esfacelamento das instituições e acordos mundiais que perduraram desde o fim da Segunda Guerra, risco crescente de um conflito mundial com o uso de armas nucleares, organização de alianças e blocos que não dialogam entre si, aumento das tensões sociais em escala planetária devido ao fracasso do capitalismo, eis o cenário em que Lula e seu governo terão que atuar. Uma floresta em chamas onde poucos parecem perceber que, no fim, as chamas podem consumir a todos e todas. 

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