Contribuição para o enfrentamento da catástrofe climática, social e política

Front – Instituto de Estudos Contemporâneos

Estamos entrando na terceira semana de um estado em colapso e com a infraestrutura básica quase completamente destruída. Sistemas viário, aéreo, sanitário e educacional estão paralisados e não tem prazo para voltar à normalidade. A produção está em crise, com vastas áreas agropecuárias debaixo d’água. A produção industrial e a atividade comercial também estão paralisadas. Há cidades que não existem mais, outras em que pouco sobrou. A capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, está com seu centro comercial e administrativo em colapso e milhares de pessoas sem moradia, sem luz e sem água. Dezenas de milhares se mantêm com doações, cozinhas solidárias e auxílio dos governos. E nada disso tem hora para terminar. O Rio Grande do Sul, hoje, sobrevive basicamente da ajuda externa.

O impacto social e político deste cenário é incalculável. Mas é certo que alguém será responsabilizado por tudo isso. De nossa parte, sabemos que os principais responsáveis são as grandes corporações e os governos serviçais que colocaram em prática as políticas de cunho neoliberal e destruição ambiental. Mas o fascismo, mais uma vez, entendeu a oportunidade aberta pela crise e dissemina sua própria versão dos fatos. O bolsonarismo botou sua máquina política para funcionar, amplificando as fake news com o slogan “o povo pelo povo” que busca jogar a culpa nas costas do governo federal e, por tabela, na esquerda. Há uma estratégia e uma organização nisso tudo.

No meio do caos, sem dúvida, é urgente mitigar as perdas. Mas não será possível sair da crise sem construir uma possibilidade de futuro. Agora é o momento de apontar uma saída, discutindo um plano real de enfrentamento da crise e reconstrução do Rio Grande do Sul que passe pela ação do Estado e das organizações populares. Esta é a tarefa política central. É preciso centralizar as ações, alinhar as propostas e fazer a disputa política. Caso contrário, a catastrófica climática deixará como legado uma enorme e prolongada crise social e política cujos efeitos ainda não podem ser dimensionados.

Esboçamos aqui apenas algumas medidas que consideramos prioritárias e urgentes para iniciar este processo e que podem e devem ser incorporadas num plano popular de reconstrução mais amplo.

Propostas para o Rio Grande do Sul:

1 – Anistiar as dívidas de famílias com renda inferior a 3 salários mínimos atingidas, para que tenham condições de reconstruir suas vidas.

2 – Anistiar as dívidas dos pequenos agricultores e assentados da reforma agrária atingidos, dando condições para a retomada da produção de alimentos e o combate à fome.

3 – Criar um cartão alimentação para compra nos mercados locais e subsídio do governo para os pequenos e médios comerciantes adquirirem produtos da pequena agricultura e da reforma agrária.

4 – Retomada imediata dos estoques públicos de alimentos, para regular a oferta, evitando movimentos especulativos e elevação dos preços. Consolidação dos estoques públicos de alimentos como política permanente de Estado.

5 – Criar um programa emergencial de garantia de emprego por seis meses para todos os atingidos que têm vínculo empregatício.

6 – Criar um dispositivo que garanta o uso prioritário de força de trabalho local nas obras de reconstrução da infraestrutura do Rio Grande do Sul, garantindo assim a recuperação do emprego e da renda.

7. Construção imediata de moradias para os atingidos e mapeamento e desapropriação de imóveis que não cumpram sua função social para uso como moradia.

8 – Criar um programa de reconstrução mobiliária subsidiado pelos três entes federados para recuperação do local de moradia das famílias atingidas no estado do Rio Grande do Sul.

9 – Instituir a gratuidade (passe livre) no transporte público municipal, a fim de reduzir o custo de vida da população mais pobre.

10 – Suspensão da Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir) com vistas à recuperação financeira do estado do Rio Grande do Sul.

11 – Reconstrução de áreas atingidas com novas tecnologias de contenção de enchentes e medidas adaptativas às mudanças climáticas.

12 – Mapeamento das áreas de risco de enchentes e deslizamentos de terra no estado do Rio Grande do Sul e elaboração de uma política de realocação das populações para áreas seguras.

13 – Investir em obras de drenagem e realizar manutenção das obras de engenharia, como diques e reservatórios, para a contenção de cheias.

14 – Implementação imediata de medidas de reflorestamento de encostas, áreas ribeirinhas, recuperação de nascentes, mananciais e rios como forma de minimizar os efeitos das enchentes.

Propostas nacionais:

1 – Institucionalizar um protocolo de atuação do poder público em situações de catástrofe ambiental, que contemple medidas preventivas, emergenciais e pós-crise, garantindo assim redução de danos e maior eficiência e rapidez nas ações tomadas.

2- Criar um fundo federal de enfrentamento à catástrofes climáticas, com a sobretaxação de grandes empresas envolvidas em atividades predatórias (desmatamento, poluição, envenenamento e degradação do meio ambiente), para financiar medidas emergenciais de enfrentamento a eventos climáticos extremos no território nacional.

3 – Lançar um PAC Clima em nível federal, voltado para obras de prevenção contra catástrofes climáticas e que não esteja dentro dos limites do arcabouço fiscal.

4 – Cria um programa nacional de frentes de trabalho em territórios impactados por emergências climáticas, aliado a cursos intensivos de qualificação profissionalizante, para reconstrução da infraestrutura urbana.

5 – Fortalecer a rede de apoio solidária a longo prazo, especialmente das cozinhas comunitárias como forma organização emergencial de combate à fome em contextos de catástrofe ambiental no território nacional.

6 – Criar um seguro nacional contra catástrofes climáticas, para que os futuros atingidos por eventos extremos possam acionar em caso de perdas de bens móveis.

7 – Suspensão dos processos de privatização das empresas de saneamento e água. Retomar investimento público nas empresas públicas de água e saneamento básico pelo governo federal com cláusula de proibição de privatização por 20 anos.

Front – Instituto de Estudos Contemporâneos.

Um comentário sobre “Contribuição para o enfrentamento da catástrofe climática, social e política

  1. marcos boock rutigliano disse:

    A CIDADE QUE NÃO SE REGENERA

    Para entendermos um pouco das consequências dos desastres climáticos que assolam as cidades do século XXI, precisamos revisitar o século XIX, quando o fenômeno urbano inquietou as almas, tanto as mais sensíveis quanto as mais rudes.
    O homem, ao construir a cidade e dotá-la de uma nova natureza (artificial), muito se arriscou ao perder o controle de sua obra e suas metamorfoses, imaginando sempre que a sua criação fosse um processo algo divino, invejável, de avanço rápido e irrefreável. Ao substituir os campos e a floresta por uma “unidade funcional” de maior controle, deslumbrou-se também com o seu gigantesco poder modificador das paisagens: muitas edificações e, vindos da natureza, no máximo, um gramado rasteiro, uma lâmina d’água e uma árvore solitária. Ainda mais jactante, de lá para cá, o cidadão, orgulhoso, e dotado de espantosa cegueira botânica* passou, com centenas de olhos de seus poetas e arquitetos, a esquadrinhar e descrever todo o espaço urbano e também tudo o que era ali movido ou se fazia mover. Semideus, afirmou ao longo dos dois últimos séculos, que a sua obra arquitetônica e hegemônica seria uma “autodestruição criativa”, portanto perdoável por toda a divindade.
    O meio urbano, por não ser fruto de um processo de inteligência natural, teve o seu crescimento sempre obedecendo unicamente às normas ditadas pela necessidade econômica de produção de mercadorias e serviços, ignorando-se muitos elementos que lhe confeririam qualidades fundamentais para a continuidade e melhor futuro de sua infeliz existência. Aos poucos, mesmo nas cidades-modelo, houve a substituição da alegria pela tristeza e da atração pela repulsa, como mostrava a poesia de Baudelaire de 200 anos atrás. Nela, a exemplo de nossa Porto Alegre, já não faltavam as metáforas da morte, da destruição, da degeneração, da putrefação, da caveira…E olhem que o poeta francês mostrava a sempre enaltecida e exemplar Paris como o ambiente físico e intelectual invejado pelo mundo, porém repleto de armadilhas inescapáveis para qualquer humano. A face da cidade que passou a revelar, a exemplo de todas as outras de nosso mundo contemporâneo, é caótica e opressora, apresentando claramente o caráter dicotômico do bem e do mal.
    Muito embora as cidades e suas mazelas possam ser tratadas de forma genérica, os impactos das técnicas modernas castigaram principalmente as áreas mais edificadas, mais pretensiosas e, pelo grande distanciamento com a natureza, pouco inteligentes. Com isso comprometeram de forma irremediável, a sua capacidade de sobrevivência ou regeneração. Por mais investimentos que se façam, tantas são as sequelas físicas -e psicológicas- que, uma situação aceitável de recuperação somente será conseguida depois de algumas décadas de esforço coletivo e, mesmo assim, contando com uma grande dose de sorte.
    A natureza não perdoa, mas por mais incrível que pareça, ainda encontramos pessoas que entendem a cidade como “virtude”, como “vício” e como algo “além do bem e do mal”.

    Avaré, junho de 2.024

    Marcos Boock Rutigliano

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