A lógica do trabalho escravo contemporâneo

Nauber Gavski da Silva

O assunto do momento no Rio Grande do Sul é a descoberta da escravidão contemporânea em plena Serra Gaúcha. Mais de 200 trabalhadores baianos foram resgatados no município de Bento Gonçalves depois que alguns deles conseguiram denunciar às autoridades as condições a que foram submetidos. Um empreiteiro de mão-de-obra foi preso (e solto sob fiança), e as afamadas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi foram identificadas como as empresas para quem os trabalhadores efetivamente prestavam serviço. O caso, contudo, não é particularmente uma novidade, pois é apenas mais um episódio revelador da lógica que as relações trabalhistas contemporâneas vêm assumindo no agronegócio brasileiro nas últimas décadas.

No meio rural brasileiro, a terceirização, isto é, a estratégia empresarial de transferir parte das atividades produtivas para outras pessoas jurídicas, está quase sempre presente quando há escravidão contemporânea: a cada 10 trabalhadores resgatados, 9 são terceirizados.1 O objetivo, claro, é reduzir custos, evitando ter que pagar o conjunto dos direitos trabalhistas, sem que seja necessário abrir mão da gestão do processo de trabalho. É claro que essa estratégia demonstra alguma eficácia: ela vem sendo usada há décadas pelo agronegócio do país inteiro, inclusive nas áreas economicamente mais destacadas, como São Paulo. O modelo paulista de recrutamento de trabalhadores, aliás, ajuda a explicar o que ocorre no Rio Grande do Sul.

O caso das vinícolas gaúchas apresenta as mesmas características do que ocorria no interior de São Paulo entre as décadas de 1990 e 2000.2 Os empresários paulistas buscavam gente de fora do estado para atuar em diversos ramos: sucroalcooleiro, cítrico, agroflorestal, verdureiro, granjeiro, dentre outros. Quando não contratavam uma prestadora de serviços qualquer, podiam estimular a criação de falsas cooperativas de trabalho. Em alguns casos, chegavam a patrocinar a transformação de alguns trabalhadores em empreiteiros de mão-de-obra; ou, para usar o jargão do mundo rural, criavam seus próprios “gatos”. É gente com pleno conhecimento das aspirações dos trabalhadores. Além de serem conterrâneos, eles sabem o que precisam prometer para convencer centenas de trabalhadores a migrar temporariamente de um estado a outro, em busca do trabalho “justo”. As falsas promessas de emprego certo, remuneração de dois ou mais salários mínimos, alimentação e habitação gratuitas e dignas, são elementos centrais dos anúncios feitos pelos recrutadores nos locais de origem dos trabalhadores.

Quando os trabalhadores percebem que parte do prometido não será entregue, inicia-se uma nova fase da negociação entre as partes. O problema para estes é que eles já se encontram bem longe de casa, em um lugar estranho, em que é difícil mobilizar fontes de apoio externo ao ambiente de trabalho para fazer valer o prometido. Se os trabalhadores reclamam um pouco, o empreiteiro apresenta dívidas fraudulentas: supostamente relativas ao custo do transporte, de algum adiantamento salarial ou de algum estabelecimento comercial local, que oferece crédito em nome do empreiteiro. A finalidade é convencer os trabalhadores da injustiça de suas demandas. Se o volume da reclamação aumenta, o empreiteiro pode adotar um tom mais duro, com ameaças de castigos físicos, quando não de morte. A tortura física, contudo, é um dos últimos recursos adotados pelos empreiteiros. Ela revela, claro, tanto a sordidez do algoz, quanto o isolamento social das vítimas. Isso acontecia eventualmente em São Paulo, e o caso gaúcho demonstra que, de fato, os baianos receberam tratamento diferente dos gaúchos. Isso, contudo, não é uma novidade. Racismo ou xenofobia, os “baianos” em São Paulo (termo paulista para qualquer pessoa de origem nordestina) enfrentam seguramente há mais de meio século, talvez mais. 

O que há de novo? Talvez seja o fato de o caso aparecer em um setor diretamente atrelado a um dos marcadores da diferença da classe média em relação à classe trabalhadora: o seu padrão de consumo. Como disse ironicamente um amigo, agora nem a espumante mais podemos tomar. Não se trata de algo distante e diluído, como o trabalho escravo nas carvoarias, que alimentava siderúrgicas brasileiras exportadoras nas décadas de 1990 e 2000, cujo produto eventualmente regressava ao país na forma de peças automotivas. Agora, o trabalho escravo está na prateleira de qualquer supermercado, no corredor dedicado a quem tem bom gosto. Nisso, o caso se aproxima da escravidão urbana da indústria têxtil.

A outra novidade diz respeito ao contexto histórico. Desde a liberação da terceirização com a reforma trabalhista, houve tentativas governamentais de acabar com a atual definição legal de trabalho análogo ao de escravo, vigente no Código Penal desde 2003. Os mecanismos de defesa da dignidade dos trabalhadores, presentes no texto, são talvez a maior afronta às prerrogativas patronais já causada por uma norma pública sobre trabalho no Brasil. Contudo, com um texto ambíguo, favorecendo patrões por décadas (ao não definir o que são condições degradantes e jornadas exaustivas, por exemplo), o fato é que não há quase notícia de empresário perdendo terra ou indo parar na cadeia.

Será que a mudança de rumo político do país, neste ano, indica um novo sentido? A resistência da entidade patronal de Bento Gonçalves, que não quer bolsa família para manter escravos, bem como do vereador “patriota” da cidade vizinha, que sugere contratar argentinos a brasileiros por puro racismo, não passaram impunes. Partidos, governos e até as empresas beneficiadas com o trabalho escravo condenaram o episódio. Pode ser que estejamos em um novo momento, que permitirá o avanço na legislação protetora da dignidade no trabalho e a condenação efetiva das empresas que cometem crimes contra os direitos humanos.

NOTAS

  1. FILGUEIRAS, Vitor de Araújo. Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência? In: FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; GALVÃO, Edna Maria (org.). Discussões contemporâneas sobre trabalho escravo: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. p. 434.
  2. SILVA, Nauber Gavski da. Nos limites da lei: a escravidão contemporânea no interior de São Paulo (1991-2010). São Paulo; Salvador: Edusp; Sagga, 2022.

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