A “liberdade duradoura” para fazer guerras

Anderson Barreto Moreira

“O presidente [dos Estados Unidos] está autorizado a usar todo tipo de força necessária e adequada contra as nações, organizações ou pessoas que ele constatar terem planejado, autorizado, cometido ou auxiliado os ataques terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001, ou que tenham abrigado tais organizações ou pessoas.” Essas foram as palavras da seção 2 da Resolução Conjunta que inaugurou a chamada “Guerra ao Terror” no início deste milênio. A amplitude era tanta que permitia declarar guerras aos “inimigos” a qualquer hora e lugar, sem necessidade de autorização por nenhum dos demais poderes. 

Logo, essa concepção se desdobraria em “guerras preventivas” contra países e organizações do denominado “eixo do mal”, aqueles que os Estados Unidos unilateralmente declararam “inimigos da humanidade”. A referida resolução foi aprovada em 14 de setembro por unanimidade no Senado. Na Câmara, apenas uma mulher negra corajosamente contestou e votou contra: a deputada democrata da Califórnia, Barbara Lee. Desta forma, o congresso americano deu imensos poderes ao presidente George W. Bush e sinal verde para o início de duas décadas de guerras do império. Como toda guerra imperialista, rendeu contratos bilionários para o complexo industrial-militar, desestabilizou países e regiões inteiras e deixou atrás de si um rastro de milhares de mortos e destruição.

A resolução respondia, em tese, à necessidade de revidar os atentados de 11 de Setembro, cuja autoria foi atribuída a até então obscura organização fundamentalista Al-Qaeda, liderada por um certo Osama Bin Laden, membro de uma rica família saudita que possuía inclusive negócios nos Estados Unidos. 

Em 7 de outubro de 2001, apesar de não ter havido nenhum afegão envolvido nos atentados, os Estados Unidos invadiram o país com a justificativa de que o Afeganistão abrigava a Al-Qaeda. Foi o começo da operação “Liberdade Duradoura”. Até então, o longínquo país encravado no coração da Ásia Central e governado por outro grupo fundamentalista – os talibãs, que recebiam apoio do Paquistão – era mais conhecido por ter derrotado duas tentativas de invasão do Império Britânico no século XIX e ter sido o “Vietnã” da União Soviética no século XX. 

Foi durante a década de 1970 que este país montanhoso e desértico, predominantemente agrário-pastoril, dominado por grandes proprietários de terras e dividido por vários grupos étnicos – entre eles tajiques, hazaras e, o maior, os pashtuns – passou por um processo de luta social intenso. Ao contrário da ideologia da Guerra Fria disseminada por Hollywood, não foi a ocupação soviética a responsável pela instauração de um governo socialista no Afeganistão, e nem o soldado John Rambo seu herói nacional. Em 1972, Mohammed Daoud articulou um golpe e derrubou a monarquia de seu primo, o rei Mohammed Zahir Shah. Apesar de instaurar a república e ter um discurso aparentemente progressista, o novo governo pouco modificou as condições de vida e manteve a brutalidade das perseguições políticas. Em abril de 1978, as duas alas comunistas do Afeganistão – Khalk e Parcham – articularam com oficiais do exército e da força aérea a tomada do poder.

A Revolução de Saur, como ficou conhecida, teve como primeira medida a reforma agrária, que atingia diretamente os grandes proprietários. A segunda foi o fim das doações feitas pelo futuro marido para a família da noiva, que simbolizava o processo de opressão e submissão das mulheres. Por óbvio, num lugar dominado por clãs patriarcais, a reação não tardou e em poucos meses o país estava conflagrado. Após uma violenta divisão interna entre os comunistas – com assassinatos e líderes exilados – a União Soviética ocupou o Afeganistão em 24 de dezembro de 1979.

A partir daí a história é mais conhecida. Além do Afeganistão, a revolução no Irã havia derrubado mais um ponto de apoio estadunidense na região. Para recuperar terreno, por um lado, os Estados Unidos estimularam uma guerra entre Irã e Iraque que durou por toda a década de 1980. Por outro, seguindo a estratégia de Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança nacional do governo democrata de Jimmy Carter, armaram e estimularam vários grupos conservadores e reacionários que se valiam da retórica islâmica fundamentalista para combater o “comunismo soviético” e “lutar pela liberdade”. Dentre esses estavam os talibãs e a Al-Qaeda. A União Soviética se retirou do Afeganistão em 1989 e logo seguiu-se mais um período de guerra civil quando, em 1996, os talibãs tomaram o poder. Portanto, se para o mundo é somente no início do século XXI que tudo isso vem à tona, para a CIA, o Pentágono e o governo estadunidense, esses já eram personagens bem conhecidos.

A invasão em outubro de 2001 nunca foi capaz de cumprir os objetivos que anunciou: a derrubada do governo talibã foi seguida pela instalação de um governo títere e profundamente corrupto, e a construção de um Estado “fundado nos valores democráticos e na liberdade” foi apenas um slogan. A crença dos Estados Unidos de que uma invasão militar é capaz de solucionar problemas de um país e de seu povo é a origem dos seus fracassos. Depois de 20 anos e com um rol de invasões e bombardeios – Iêmen, Iraque, Paquistão, Líbia, Somália e Síria, para citar alguns – sob a bandeira da “guerra ao terror”, a derrota dos Estados Unidos no Afeganistão parece encerrar esse capítulo. 

O futuro do Afeganistão é incerto: certamente dependerá do resultado da articulação de China, Rússia e Irã, que, sem dúvidas, pretendem aproveitar a situação para reduzir a influência estadunidense na região e tentar estabilizá-la depois de anos de guerra. Dependerá também do que venha a ser o novo governo talibã e das lutas sociais que ocorrerão no país. Quanto aos Estados Unidos, parece que já se preparam para uma nova aventura, desta vez no Mar da China Meridional, com um novo inimigo – a China – e à procura de seu novo Afeganistão. Taiwan? A liberdade para a guerra é duradoura.

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