Por Lauro Allan Almeida Duvoisin
A análise de conjuntura é uma ferramenta fundamental para aqueles que lidam com a vida política. Ela é uma condição para tomar decisões, posicionar-se e planejar ações. No mesmo sentido, a proposição da tática, outra categoria central para qualquer militante, está fortemente vinculada à conjuntura. Apesar disso, pouco se discute sobre a profundidade desta categoria temporal. O argumento central deste ensaio é o de que a conjuntura deve ser compreendida pelo marxismo como um nível temporal específico da realidade social, ao mesmo tempo distinto e imbricado à temporalidade estrutural.
A forma predominante de análise que se consolidou na tradição marxista é aquela que podemos chamar de estrutural. Trata-se do estudo dos grandes processos históricos, dos quais se depreende as estruturas e categorias que constituem a sociedade capitalista e seu movimento. A principal referência deste tipo de análise é O capital de Marx. No entanto, olhando com cuidado, não é isento de contradição o fato de que a maior parte dos escritos que o pensador alemão produziu ao longo de sua vida tenham sido análises políticas de acontecimentos de curta duração. Talvez o exemplo mais conhecido desse perfil de texto seja a obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte.
Não vem ao caso aqui discutir porque Marx não chegou a sistematizar um método de análise da conjuntura, apesar de sua rica produção na área. Interessa-nos perceber que o desenvolvimento de métodos e instrumentos de análise deste tipo são mais tardios. Podemos atribuir a Lênin uma maior atenção e ênfase aos processos conjunturais. Foi a partir dele que a conjuntura como categoria temporal foi ganhando centralidade para a compreensão do desenvolvimento da sociedade, tendo como centro a luta de classes. Na esteira de Lênin, muitos outros deram sua contribuição. Dentre os marxistas clássicos podemos destacar Trotski, Gramsci, Rosa Luxemburgo, Mao Zedong, já entre os mais contemporâneos podemos citar Nicos Poulantzas e Marta Harnecker a título de exemplo. Grande parte das reflexões que seguem abaixo inspiraram-se em algumas discussões abordadas por estes pensadores.
Apesar dos avanços, parece subsistir certa confusão dentro da teoria marxista quando os analistas tentam passar do nível estrutural para o conjuntural de análise. Por isso, o primeiro problema a ser enfrentado é o da relação entre estrutura e conjuntura. Dependendo de como se concebe uma e outra, pode-se chegar a duas compreensões perigosas. A primeira é menosprezar a particularidade específica do tempo conjuntural e tratá-lo apenas como um recorte da estrutura, ou a estrutura vista sob o ponto de vista da curta temporalidade.
Conceber a conjuntura como um recorte menor da estrutura leva a um viés estruturalista e pode ter como consequência uma visão determinista ou finalista da história. Em outras palavras, no limite pode-se chegar à conclusão de que a ação humana consciente não tem nenhum papel. Por consequência, a história passa a ser vista como um processo regido pelas estruturas que se auto-desenvolvem por si mesmas, e qualquer ação humana não é mais do que um momento da própria estrutura. Não vem ao caso aqui aprofundar as origens e diferentes vertentes do pensamento estruturalista, mas é importante reconhecer que ele também tem seu lugar no marxismo. Aliás, creio que esta ainda é a visão dominante.
Uma segunda compreensão perigosa é menosprezar o peso da estrutura e vê-la quase como uma sucessão de tempos conjunturais, como se em cada conjuntura a própria existência da estrutura fosse colocada à prova. Esta perspectiva pode ser encontrada em teóricos que dão maior ênfase ao princípio da práxis, ou seja, à capacidade criativa humana. Ela peca pelo voluntarismo e pode levar a uma visão fragmentada de história. É como se a estrutura pudesse ser modificada ao sabor das vontades, desde que os seres humanos se libertem de sua alienação e atinjam a consciência plena de sua existência.
A convivência dessas duas tradições não é fácil de ser compatibilizada. Como toda dualidade, esta também pode se tornar uma armadilha. Para enfrentá-la é necessário adentrar a discussão da estrutura. Na verdade, é mais adequado falar em estruturas, no plural, pois a sociedade não é composta de apenas uma estrutura. Como se define uma estrutura? Há uma definição relativamente simples. Estruturas são condições objetivas, subjetivas ou práticas sociais que se reiteram ao longo do tempo. Portanto, uma das características das estruturas é a sua capacidade de reprodução.
Por condições objetivas podemos pensar diferentes fatores mensuráveis, como as condições ambientais, a distribuição espacial da população, a distribuição da riqueza, dentre outros. Contudo, as condições objetivas são apenas uma parte do conjunto de estruturas. Tão importante quanto estas são aquelas condições subjetivas e práticas sociais que dependem do engajamento dos seres humanos. Por condições subjetivas podemos entender as crenças e valores ou mais precisamente as visões ideológicas que subsistem por longo tempo. Já as práticas sociais são os comportamentos, hierarquias sociais, tradições e normas culturais que se reproduzem mediante a repetição. Evidentemente essa não é a única forma de definir o que são estruturas, mas é uma definição que apreende um aspecto central do conceito, a reprodução no tempo, e é facilmente compreensível.
No entanto, não devemos levar muito longe a distinção entre condições objetivas, subjetivas e práticas sociais, já que na vida real elas são interdependentes. Podemos tomar como exemplo a propriedade privada. Esta perpassa fatores objetivos, como a distribuição da terra e outros bens necessários à vida, mas também deve sua permanência às condições subjetivas e às práticas sociais. Outro exemplo é a religiosidade cristã, que depende ao mesmo tempo da reprodução de condições subjetivas, como crenças e valores, assim como de práticas sociais, tais como normais, padrões de comportamento, vivência comunitária, rituais, etc.
De forma didática, podemos sintetizar estes diversos fatores em quatro grandes estruturas básicas que regem a sociedade: econômica, social, política e ideológica. Aqui, o debate sobre a existência ou não de uma hierarquização entre elas, conhecido pela famosa metáfora da base/superestrutura que se encontra em algumas passagens de Marx, é menos importante do que a compreensão da relação entre as estruturas e a conjuntura.
Mas se a conjuntura não se reduz a um simples momento de existência das estruturas, o que afinal a caracteriza?
Em primeiro lugar, a conjuntura tem uma totalidade específica que se deve às características próprias dessa temporalidade. Sempre que falamos em conjuntura nos referimos a um período histórico de curta duração ainda em desenvolvimento. Exatamente por isso, ela sintetiza a relação especial que o tempo presente estabelece com o passado e o futuro. É o tempo do devir, onde o presente aparece como resultado daquilo que já passou e como espectro de possibilidades do que poderá vir. Como estamos analisando um processo ainda em curso, o seu futuro não é uma totalidade pré-determinada. Por isso, a conjuntura caracteriza-se por ser uma totalidade aberta.
Uma segunda característica do tempo conjuntural deve-se à sua especial relação com as estruturas. É importante compreender que estrutura e conjuntura são dois níveis da sociedade cuja natureza e materialidade são ao mesmo tempo distintas e imbricadas. É certo que uma boa análise de conjuntura deve ser precedida de uma adequada análise estrutural. Afinal, é óbvio que os dilemas conjunturais vividos por sociedades majoritariamente urbanas são distintos daqueles que aparecem em sociedades agrárias, ou que as diferenças entre culturas religiosas podem afetar decisivamente os fenômenos conjunturais, por exemplo. Porém, deve-se levar em conta que a relação entre estruturas e conjuntura é mais complexa do que isso.
Se por um lado é verdade que há uma unidade histórica no desenvolvimento das estruturas, que consiste num certo grau de coerência e compatibilidade entre elas para que a sociedade se mantenha, por outro, também é verdade que cada estrutura tem seu próprio ritmo de desenvolvimento. Podemos considerar que pelo menos nos últimos dois séculos, a tendência estrutural dominante é de expansão do capitalismo, seu desenvolvimento e desdobramento em novas formas. Porém, o conjunto das estruturas que compõem a sociedade é marcado por continuidades, transformações, rupturas e reconfigurações e podem ocorrer defasagens e tensões. Por exemplo, as estruturas ideológicas e políticas nem sempre são capazes de acompanhar o ritmo das mudanças econômicas. Mas o inverso também pode ocorrer. Em alguns casos, mudanças na estrutura política se chocam com as estruturas sociais, econômicas e ideológicas pré-existentes. Esse parece ser o caso do Brasil atualmente, onde temos uma estrutura política formalmente democrática, convivendo com uma estrutura social fortemente estratificada, com fortes traços patriarcais, racistas e autoritários.
Uma vez que podem ocorrer defasagens e incongruências entre as estruturas, cada conjuntura é marcada por uma particular combinação de contradições estruturais. Daí decorre uma segunda característica do tempo conjuntural: os limites e possibilidades históricas postos pela conjuntura dependem do nível de contradições a que chegaram as estruturas. Portanto, ainda que a conjuntura seja uma totalidade aberta, isto não significa uma total indeterminação de seus possíveis desfechos. Neste sentido, é possível pensar em diferentes tipos de conjunturas dadas pelo grau de contradições que as estruturas se encontram. Há aquelas conjunturas que podemos chamar de “normais”, em que o grau de coesão supera o nível de contradições, formando uma barreira para os esforços de transformação da ordem. Em outros tipos de conjuntura, onde as contradições se agravam, abre-se maior espaço para a criação de novas relações e para a transformação das estruturas existentes. Há ainda as conjunturas revolucionárias, em que o nível das contradições estruturais é tão intenso que inviabiliza a mera reprodução das relações existentes e onde o surgimento de novas relações é praticamente inevitável.
Posto dessa forma, a relação entre estruturas e conjuntura parece clara e evidente. Mas por diversos motivos não é isso o que ocorre. Um dos problemas para reconhecer em que situação estrutural a sociedade se encontra é de ordem puramente cognitiva. Afinal, as mudanças estruturais costumam ser lentas e o conhecimento do que está ocorrendo é sempre retrospectivo. À exceção de estudos sistemáticos, muitas vezes tiramos conclusões sobre as estruturas com base em fenômenos conjunturais, o que nem sempre se mostra adequado e pode produzir distorções na leitura da realidade. Ou seja, o nosso conhecimento, além de ser seletivo, se encontra atrasado em relação aos processos estruturais. Por estas razões, quanto mais a análise se aproxima do presente, mais difícil vai se tornando conhecer as tendências estruturais, especialmente em conjunturas marcadas por rápidas transformações.
Mas há uma segunda fonte de incertezas no conhecimento da conjuntura que tem a ver com a própria natureza desta temporalidade. A conjuntura está mais próxima do nível fenomênico do que as estruturas, por isso ela é contaminada, por assim dizer, pelas contingências históricas. As contingências históricas são justamente aqueles eventos conjunturais que carregam altos níveis de indeterminação. Vamos tomar um exemplo. Em 1972, Manágua, a capital da Nicarágua, sofreu um violento terremoto que matou cerca de 20 mil pessoas e destruiu grande parte da infraestrutura urbana. Este acontecimento afetou gravemente as condições de vida da população mais pobre e expôs as contradições políticas da ditadura dos Somoza, família que governava o país desde os anos 1930. Na esteira do terremoto de 1972, a Frente Sandinista de Libertação Nacional intensificou sua atuação e encontrou um terreno fértil para crescer e radicalizar sua luta contra o somozismo, derrotando-o militarmente em 1979, marco da revolução nicaraguense.
Pois bem, o terremoto de 1972 poderia ser previsto a partir do desenvolvimento das estruturas econômica, social, política ou ideológica daquela sociedade? Evidentemente que não. Mesmo assim, esta contingência histórica teve impactos estruturais decisivos e afetou os rumos da política daquele país.
Outro exemplo, desta vez não ligado a fatores de ordem natural. Em 1956, Fidel Castro e outros 81 militantes do movimento 26 de Julho que estavam exilados no México embarcaram no Granma, uma pequena embarcação projetada para comportar no máximo 12 pessoas. O barco atravessou o mar do Caribe e chegou com muitas dificuldades a Cuba. Mas o que teria ocorrido se eles tivessem naufragado no meio do caminho? Esta não é apenas uma especulação contrafactual, era uma possibilidade real reconhecida pelos próprios revolucionários durante e depois daquela jornada, dadas as condições precárias da viagem. É a este tipo de indeterminação inescapável da conjuntura que o termo contingência histórica se refere. Como se sabe, o triunfo da revolução cubana deveu-se não apenas às contradições estruturais de um país em condição neocolonial e dependente, mas também a uma sucessão de eventos com alto grau de indeterminação e, em alguns casos, improváveis. Por outro lado, esta contingência não teria qualquer significado especial se não fossem as contradições estruturais já aguçadas na sociedade cubana naquela conjuntura.
Como se vê, faz parte da dimensão fenomênica da conjuntura a centralidade que os eventos adquirem. Os eventos são episódios relevantes que marcam o sentido para onde a conjuntura aponta, como uma espécie de estaca cravada de tempos em tempos que indica o caminho. Tais eventos podem ser de inúmeros tipos: uma greve, uma vitória eleitoral, a aprovação de uma lei importante, uma catástrofe natural, uma mobilização de massas, um golpe de Estado, um massacre, a morte de alguma personalidade conhecida, etc. Estes eventos conjunturais sintetizam no tempo e no espaço diferentes processos, mas uma de suas características relevantes é a carga emocional que eles são capazes de mobilizar, seja medo, frustração e desânimo, seja indignação, coragem, e desejo de poder.
Por esta carga emocional constitutiva, os eventos também têm um papel político fundamental pois são capazes de dar sinais sobre a correlação de forças na sociedade. Afinal, é a partir dos eventos que os diferentes grupos sociais se identificam e se posicionam uns em relação aos outros. Um típico evento conjuntural que teve importância decisiva no processo de luta de libertação do Vietnã foi a autoimolação do monge budista Thích Quảng Ðức nas ruas de Saigon em 1963. A foto do monge calmamente sentado em posição de lótus enquanto seu corpo ardia em chamas rodou o mundo e impactou a opinião pública internacional, dando força para o movimento anti-imperialista.
Em síntese, a conjuntura pode ser entendida como uma temporalidade específica onde o passado-presente e o presente-futuro se encontram, de tal forma que as determinações estruturais convivem organicamente com as contingências históricas. Este elemento de não determinação intrínseco à conjuntura é o que faz dela uma totalidade aberta.
Na conjuntura é possível falar da emergência de sujeitos históricos capazes de intervir no processo e influenciar decisivamente seus desdobramentos. Isso não significa que esta emergência vá se dar em todas as conjunturas, e sim que isto é possível de acontecer, que está colocado como potencialidade. Por consequência, a conjuntura é o espaço temporal da possibilidade de uma tomada de consciência coletiva. Consciência aqui no sentido histórico do termo, não no sentido idealista. Consciência como capacidade de uma coletividade compreender as principais contradições de seu tempo, visualizar o seu próprio lugar nelas e organizar-se para influenciar os seus desfechos. Afinal, a consciência é o oposto da mera reprodução das estruturas. É nesse sentido que pode-se falar em consciência e em sujeitos históricos, e se há algum lugar onde podemos encontrá-los, este lugar é o tempo conjuntural. Evidentemente, isto nunca se dá no vazio. As determinações estruturais continuam existindo, mas em diversos momentos as contingências históricas podem abrir brechas temporárias para a emergência dos sujeitos.
Por este motivo, a conjuntura é a temporalidade da política por excelência. É na conjuntura que o poder dos dominadores se transfigura em decisões que afetam a vida de milhões, adquirindo resultados palpáveis e imediatos. E justamente por isso é nesta temporalidade que a luta pela conquista do poder pode se tornar uma alternativa para os dominados.
Como já alertei, alguns pensadores marxistas incorrem numa certa indistinção entre os níveis estrutural e conjuntural dos processos históricos. Para além de tudo o que já foi dito, creio que parte do problema também se deva à pouca preocupação em fazer as necessárias mediações categóricas ao se transitar de um a outro nível. Como a conjuntura é uma temporalidade que se encontra mais próxima do nível fenomênico, deve-se considerar que o emprego de categorias estruturais, como capitalismo, classes sociais e Estado, por exemplo, exigem mediações para que sejam devidamente aplicadas à análise. Neste sentido, é importante empregar estas categorias com cuidado, pois existe o risco de deturpar-se o seu sentido original ou empregá-las imprecisamente. Ademais, a conjuntura demanda também categorias específicas, tais como forças sociais, correlações de força, ofensiva e defensiva, dentre outras, que ajudam a desvendar o sentido dos eventos e permitem estabelecer as conexões com aquelas categorias estruturais.
Tomemos o Estado como exemplo. Estado é uma categoria estrutural que descreve a unidade do poder político nas sociedades modernas. Porém, no nível conjuntural é difícil ver o Estado com este grau de unidade. Geralmente o que se verifica é a atuação de diferentes instituições– a Câmara, o governo, a polícia, a vara judicial, os partidos, etc. – e não é incomum que tais instituições tomem decisões contraditórias. O mesmo vale para a categoria classe social, que do ponto de vista estrutural descreve a posição que cada indivíduo ocupa no processo produtivo e na hierarquia social. Conjunturalmente, é muito difícil perceber a classe em ação. O que se vê é o movimento de diferentes forças sociais, que se aglutinam em torno de identidades e demandas muito variadas.
Em função desta distinção entre a temporalidade estrutural e conjuntural, defendemos que é possível ao marxismo manter seus fundamentos e ao mesmo tempo incorporar categorias oriundas de outras vertentes teóricas para o estudo dos processos conjunturais. Algo deste tipo foi o que fizeram Lênin e Gramsci ao introduzir elementos da teoria militar no marxismo, o que fez Wilhelm Reich ao incorporar as ideias da psicanálise, ou ainda o que fez Poulantzas ao apropriar-se de certos elementos da ciência política institucionalista.