Por Anderson Barreto Moreira*
O materialismo histórico, como teoria social, tem sua trajetória marcada pela própria dinâmica do modo de produção capitalista. As alterações na correlação de forças mundial ora permitiram maior espaço, ora decretaram o ocaso do marxismo como ciência social. Nos últimos trinta anos não foi diferente: com a derrota da principal experiência de transição ao socialismo no século XX – a União Soviética – estaria comprovada não apenas a inviabilidade da alternativa societal, mas, também, o materialismo histórico como instrumento de análise (CODATO; PERISSINOTTO, 2020). Contudo, a recorrência das crises e as profundas mudanças no sistema capitalista[1] têm agudizado os elementos destrutivos deste modo de produção, gerando efeitos nas dimensões político-econômicas e sociais, internas e externas. Neste texto pretendemos abordar de forma sucinta as contribuições e debates do materialismo histórico no estudo da área de Relações Internacionais. Em linhas gerais, optamos em dar ênfase as abordagens relacionadas ao Estado presentes em cada uma das vertentes. A ordem que segue busca apreender o percurso das possíveis interconexões históricas e teóricas, e não uma hierarquia de importância.
Histórico e aportes do marxismo para o campo das Relações Internacionais
É reconhecido que, embora Marx e Engels não tenham desenvolvido uma teoria formal das relações internacionais[2], produziram “uma teoria geral abrangente da ação política, social e econômica, capaz de considerar todos os campos da ação social.” (HALLIDAY, 1999, p. 69). Para Visentini, a força das categorias analíticas legadas permite “fundamentar a noção de economia e de dominação no plano internacional, dentro de uma perspectiva que enfatiza os macroprocessos de evolução, transformação e ruptura.” (2019, p. 42, itálico do autor). É da apreensão da totalidade do fenômeno histórico de expansão do capitalismo que o marxismo retira sua força como instrumento de análise das relações internacionais.
A obra de Lênin – Imperialismo, estágio superior do capitalismo – estruturou os principais elementos de uma teoria marxista da política internacional executado pelos Estados – ainda que não tenha tido este propósito específico. Partindo do contexto da Primeira Guerra Mundial e do processo revolucionário na Rússia, analisou a mudança qualitativa da dinâmica de acumulação, centralização e concentração do capital no início do século XX. Das contradições decorrentes do predomínio e expansão do capital financeiro inferiu as mudanças na política internacional, marcada pela guerra e partilha das colônias e Estados dependentes. Os Estados imperialistas, instrumentos das classes dominantes, conduziriam as guerras imperialistas como forma de expandir o domínio do capital e, portanto, os processos revolucionários teriam na tomada – e substituição – desses Estados seu objetivo principal.
A teoria do imperialismo reverberou em autores que desenvolveram diferentes abordagens no estudo das Relações Internacionais. Para Osório (2018), os trabalhos de Immanuel Wallerstein, Samir Amin e Giovanni Arrighi – ainda que tenham importantes distinções entre seus enfoques – convergiram para discussão da dinâmica da troca desigual e da dependência que marcam a constituição do sistema internacional. A teoria do sistema-mundo (WALLERSTEIN, 1974) compreende que os mecanismos de reprodução do capital geram distorções e divisões sistêmicas entre centro/periferia, norte/sul global. Os Estados e as classes integram essa totalidade, entretanto, os primeiros recebem pouca atenção, dado que o foco da análise reside no sistema mundial em seu conjunto, um sistema interestatal marcado pelo conflito e domínio das potências centrais.
Sob a ótica dos países da periferia do sistema, e na esteira dos processos de libertação nacional na África e Ásia e das convulsões sociais que marcaram a América Latina das décadas de 1960/1970, emergiu a teoria marxista da dependência, que buscou compreender as estruturas e dinâmicas do capitalismo que caracterizam as formações sociais brasileira e latino-americana. Para Ruy Mauro Marin[3], a dependência pode ser entendida “como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência.” (MARINI, 2000, p. 109). Portanto, o imperialismo não é apenas um fenômeno externo, mas também um fenômeno da própria dinâmica interna de reprodução do capital. Para Osorio (2014), o Estado no capitalismo dependente sofre com restrições a sua soberania por parte de Estados centrais – imperialistas – e que este exercício desigual no sistema mundial, que pode se acentuar ou atenuar dependendo do período histórico, provoca relações de subsoberania. A consequência disso é a constante subordinação/associação das classes e frações de classe dominantes desses países em relação aos seus pares dos países centrais, como forma de garantia da sua própria existência.
Estado e relações internacionais
O papel do Estado na análise das relações internacionais não é exclusividade do marxismo. O Realismo, um dos principais paradigmas da área, também se concentra no papel e ação estatal, porém, o faz em bases diferentes do materialismo histórico. Tendo como pressupostos centrais 1) a anarquia do sistema internacional e 2) o uso do poder dos Estados para garantir a sua sobrevivência diante de tal anarquia, as capacidades (militares, econômicas, políticas e tecnológicas) do Estado devem servir para a manutenção da estabilidade interna e a segurança em relação a agressões externas, suas funções primordiais. A racionalidade e o interesse nacional marcariam a atuação dos seus agentes no cenário internacional. O poder, nesse caso, é o próprio Estado, ente abstrato e a-histórico, que busca garantir a sua existência no sistema anárquico.
Fred Halliday (1999) aponta para os conceitos de modo de produção e formação social como as principais contribuições do materialismo histórico para construir uma abordagem diferente. O Estado, e todas as suas ações, estão imersos em uma realidade socioeconômico internacional onde predominam a hierarquia, os interesses de classes e Estados atravessados por conflitos. Para Berringer, a teoria das Relações Internacionais estaria restrita “sem o estudo das relações políticas, econômicas e sociais entre os Estados, bem como da relação entre o que se produz no interior de uma formação social e seu reflexo no cenário internacional” (2014, p. 434).
A teoria marxista do político e do Estado, elaborada pelo filósofo e sociólogo Nicos Poulantzas, que articula as categorias apontadas por Halliday para conceituar o Estado capitalista, é de grande potencial para os estudos das Relações Internacionais. Para Poulantzas (1977), o Estado capitalista possui autonomia relativa em relação aos interesses econômicos das classes dominantes, ainda que predominem os interesses políticos dessas classes e suas frações, na constituição do bloco no poder. O Estado é o fator de coesão dos níveis – econômico, político e ideológico – de uma formação social e a estrutura na qual se condensam as contradições entre os diversos níveis. A autonomia relativa produz, como efeito aparente[4], a ideia do Estado como representante do “interesse geral”, uma entidade com autonomia e poderes próprios e isso é o que permite o cumprimento da função de coesão da formação social e manutenção do poder das classes dominantes e suas frações. O poder do Estado não existe por si só, ele tem raiz na determinação de classe, ainda que possa atuar em contrariedade a essa para o cumprimento de sua função de coesão da formação. Em última instância, o Estado impede a destruição da formação social assentada nos antagonismos de classes. São essas determinações que caracterizam os Estados que atuam no sistema internacional.
Por meio deste breve texto buscamos apresentar, a partir de referências importantes na área, elementos para demonstrar a contribuição do materialismo histórico para o debate acerca do Estado e das Relações Internacionais. Como toda escolha também implica exclusão, estamos cientes das lacunas. Que o bom debate possa preenchê-las. Como toda ciência social, os pressupostos do marxismo vêm sendo extraídos e confrontados com a dinâmica histórica, com a análise do seu objeto, o capitalismo. As implicações do alcance planetário desse modo de produção demandam uma análise da articulação entre a ação dos Estados nacionais capitalistas nas formações socioeconômicas – e suas clivagens em classes sociais – e o sistema internacional.
Referências
BERRINGER. Tatiana. Nicos Poulantzas e o estudo de Relações Internacionais. Revista Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 7, nº. 2, pp. 443-452, 2014. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/13419/10320. Acesso em: 16 nov. 2020.
CODATO, Adriano; PERISSINOTTO, Renato. Marxismo como ciência social. Petrópolis, RJ: Vozes; Curitiba: Ed. UFPR, 2020.
HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1999.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: SADER, Emir (Org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 105-165.
OSORIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014.
OSÓRIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. São Paulo: Ideias & Letras, 2018.
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
______. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
VISENTINI, Paulo G. Fagundes. O Terceiro Paradigma das Relações Internacionais: a contribuição do materialismo histórico. Cadernos de Relações Internacionais e Defesa, Santana do Livramento, RS, v. 1, nº. 1, pp. 40-56, 2019. Disponível em: https://periodicos.unipampa.edu.br/index.php/CRID/article/view/209/177. Acesso em: 19 nov. 2020.
WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World System. Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. Londres: Academic Press, 1974.
* Professor de História da rede estadual do RS. Coordenador do Front – Instituto de Estudos Contemporâneos. anderson.barretomoreira@gmail.com
[1] As crises são inerentes ao modo de produção capitalista, como afirmou Marx n’O Capital. Ainda que tenham origem no processo de produção e valorização do valor, possuem interações múltiplas que produzem dinâmicas que tornam possível sua manifestação em variadas esferas. Em 2008, foi a crise no mercado de hipotecas dos Estados Unidos que desvelou a crise mundial subsequente e seus desdobramentos atuais.
[2] Efetivamente, o método inaugurado por Marx e Engels não comporta a elaboração de teorias a priori. As categorias analíticas devem ser abstraídas do movimento real do objeto – no caso a sociedade capitalista – e, posteriormente, confrontadas com este para observar sua validade ou não.
[3] Em conjunto com Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos e André Gunder Frank, constituíram o que se denominou teoria marxista da dependência.
[4] A aparência não significa falseamento ideológico da realidade, ela é real porque é a forma como as contradições do modo de produção se manifestam nas formações sociais.