Anderson Barreto Moreira
Um dos sinais de mudanças na ordem mundial – como a que estamos vivendo – é a sensação da “aceleração do tempo histórico”, a percepção de que estamos imersos em uma série de eventos que nos projetam para fora do lugar-comum. As explicações para essa percepção de deslocamento para o campo das incertezas podem vir de diferentes áreas, mas, em se tratando de história, talvez a passagem das contradições e conflitos até então velados para a cena principal do cotidiano seja um bom fio condutor. O final de fevereiro de 2022, data do início da mal denominada “Guerra na Ucrânia”, é um exemplo disso. O processo de transição da hegemonia na ordem mundial ganhou novos contornos em pouco mais de um mês, em que todas as veleidades foram deixadas de lado. A crueza dessa disputa, as contradições da ordem mundial expostas em praça pública tal qual estamos vendo, é o que causa espanto com um mundo que já não se parece mais com o de ontem.
A ordem só é ordem porque é capaz de se apresentar – e ser vista – como natural. Por isso, devemos nos perguntar o motivo de só agora nos espantarmos com o uso da força das armas quando vivíamos em uma ordem mundial que, pelo menos nos últimos 30 anos, promoveu inúmeras guerras e milhões de mortes em praticamente todos os continentes, com apoio ou silêncio da chamada “comunidade internacional”. Portanto, sejamos sinceros, não é a guerra que nos espanta, mas o fato dela ser conduzida por quem, em tese, deveria “respeitar” a ordem internacional até então existente. Portanto, o que estamos presenciando não é uma simples ação militar do Estado Russo sobre a Ucrânia, muito menos a ação de um “lunático sanguinário” como sugere a propaganda de guerra da imprensa ocidental. Não nos iludamos com os clamores hipócritas de paz dos conglomerados que monopolizam a informação pois, no fundo, clamam por mais guerra. Estamos sim diante de uma das batalhas que definirá os próximos passos na disputa pela hegemonia mundial.
Ainda que haja vencedores definitivos, podemos afirmar que a velha aliança ocidental liderada pelos Estados Unidos dá sinais de que não possui condições de deter Rússia e China ao mesmo tempo. É essa aliança que tem causado a estridência dos discursos – como a afirmação, em alto e bom som, feita por Joe Biden, de que o objetivo dos Estados Unidos é a derrubada do governo de Vladimir Putin. O desespero vai se tornando o conselheiro das decisões que Estados Unidos e uma submissa União Europeia estão tomando. Romper de algum modo a aliança Rússia-China é a única possibilidade de reconquistar o posto de senhores do planeta. Entretanto, as duas potências orientais estão mais próximas do que nunca em sua aliança estratégica.
Ainda que esteja em andamento, a operação militar russa já é vitoriosa. Ao contrário da narrativa inicial alucinante da possibilidade de uma Ucrânia vencedora, o que há de fato é um completo controle russo sobre o leste e o sul do país, com cerco sobre as principais cidades e praticamente eliminando qualquer capacidade de defesa e estruturas militares da Ucrânia. Uma operação que, sem dúvida, será objeto de profundos estudos na área militar. Somente a entrada em cena da OTAN poderia promover alguma mudança na situação. Porém, isso parece ter pouca probabilidade de ocorrer nesse momento, pois o interesse maior é a atuação indireta dos EUA e aliados fornecendo armas para a “resistência” ucraniana. Não importa que essa resistência hoje seja liderada por forças regulares ou irregulares neonazistas. Impressiona o esforço em esconder esse fato e convencer a “comunidade internacional” de que são “um mal menor” frente à “barbárie” russa. Nem mesmo a descoberta e denúncia da existência de laboratórios de armas químicas e biológicas na Ucrânia mexeu com a “comunidade internacional” e a ONU. Esta última tem se esforçado para seguir o mesmo destino da sua antecessora, a Sociedade das Nações, extinta por se mostrar incapaz de evitar uma nova guerra.
Provavelmente, o maior sinal de que o bloco ocidental é forte candidato a sair derrotado dessa batalha não está no campo militar, mas sim na economia. Uma certa euforia ocidental se estabeleceu nos primeiros momentos em que foram capazes de uma unidade, que não era vista há muito tempo, para impor sanções à Rússia. A primeira ação de grande calibre foi a exclusão das instituições financeiras russas do SWIFT, o principal mecanismo financeiro mundial. Quase imediatamente, a China se tornou o caminho seguro para a continuidade das transações russas, inclusive substituindo e incorporando mais de 140 milhões de clientes na maior rede de cartões de crédito do mundo, a UnionPay.
A segunda sanção – que talvez tenha atingido mais fortemente a Rússia – foi, na verdade, um roubo, já que simplesmente os títulos adquiridos e o ouro depositado no ocidente foram não apenas bloqueados, mas transformados em ativos nesses países. Não tenhamos dúvidas de que isso será objeto de conflitos num futuro próximo.
A terceira sanção de maior monta, propalada como o golpe de misericórdia na economia russa, talvez tenha sido a mais espetacular demonstração de que os líderes políticos do chamado ocidente entendem a economia real apenas como cifrões em contas bancárias. Os Estados Unidos anunciaram o corte de compras de petróleo e gás russos, e pressionaram para que a Europa faça o mesmo, sabendo que o continente é dependente de tais recursos, seja para ser competitivo em sua produção industrial, seja para aquecer suas residências. Portanto, qualquer raciocínio lógico levaria a Europa a uma decisão contrária a tal medida. Não foi o caso. Numa demonstração de total submissão aos Estados Unidos a União Europeia aceitou a proposta, acreditando ser possível uma transição suave, e agora se torna a maior prejudicada, vendo seus preços de energia em patamares inacreditáveis. A resposta russa foi simples e mortífera: países inimigos que queiram continuar comprando gás russo devem pagar na moeda russa, o rublo. Resultado: França e Alemanha já se preparam para racionamento de energia. Jantares à luz de velas podem voltar à moda na Europa nos próximos dias.
Ainda que seja precipitado falar que a velha ordem morreu, pois sempre há a opção da guerra total para a garantia da hegemonia, é provável que o sistema mundial anterior a 2022 esteja deixando de existir. O reconhecimento desta situação não depende do apoio ou não a Vladimir Putin e seu governo. Trata-se de compreender que nesse momento a iniciativa russa pôs a nu a ordem estabelecida, uma ordem onde Estados Unidos e aliados não têm pudor de exigir que países como Índia, China e Turquia se submetam aos seus ditames contra a Rússia. Eis o sistema como ele é, eis o imperialismo em sua face real. São apenas os primeiros passos de uma nova ordem, carregada de contradições e possibilidades.