A escola abriu. Tudo voltou ao normal?

Lauro Allan Almeida Duvoisin e Olívia Carolino

Ao completarmos dois anos de pandemia no Brasil, as transformações que esta conjuntura representou para diversos aspectos da vida tendem a ser assimiladas. Relações familiares, trabalho, estudo e lazer, todas essas dimensões foram impactadas de diferentes formas e já se vislumbram algumas mudanças que vieram para ficar. A maioria das mudanças foi para pior: depreciação das condições de vida e da saúde, inflação, agravamento da fome, desemprego, precarização do trabalho e radicalização do individualismo. Na educação não foi diferente.

Carta Semanal número 5 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, publicada neste mês de fevereiro, aborda uma dimensão silenciosa da crise que é o analfabetismo global. Segundo as Nações Unidas, “mais de 1,5 bilhão de estudantes e jovens em todo o planeta são ou foram afetados pelo fechamento de escolas e universidades devido à pandemia de covid-19”, e pelo menos 1 bilhão de crianças em idade escolar correm o risco de ficar para trás em seus estudos. No panorama latino-americano, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) revela que 99% dos alunos da região passaram um ano letivo inteiro com interrupção total ou parcial das aulas presenciais, enquanto mais de 600 mil crianças lutavam com a perda de seus cuidadores devido à pandemia. Estima-se ainda que a crise poderia forçar 3,1 milhões de crianças e jovens a abandonar a escola e fazer mais de 300 mil trabalhar.

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Mas, longe de ser óbvio, este resultado não foi um acidente de percurso. A pandemia certamente contribuiu para o agravamento deste processo, mas sua causa última é o avanço global da financeirização na educação. É isto o que temos constatado em nossas pesquisas ao longo dos últimos dois anos. Ainda em agosto de 2020, o Front Instituto de Estudos Contemporâneos e o Instituto Tricontinental iniciaram uma pesquisa conjunta denominada Mapa da estrutura corporativa no Brasil. Com o objetivo de monitorar o processo de financeirização, escolhemos o estudo de caso da Educação. Este trabalho teve como resultado a publicação da cartilha A educação brasileira na bolsa de valores, onde mapeamos a estrutura de propriedade e as áreas de atuação de 8 companhias educacionais cotadas na B3 e na Nasdaq. Na sequência, elaboramos o texto A composição orgânica do capital no setor educacional brasileiro, no prelo, onde apontamos a tendência de aumento do

investimento em tecnologias da informação e comunicação e de redução do peso da força de trabalho nas corporações do setor. Passamos também a monitorar a conjuntura educacional, com a publicação de boletins periódicos junto ao Observatório do Capitalismo Contemporâneo, do Instituto Tricontinental.

:: A “crise silenciosa” do analfabetismo global ::

Em 2021 demos um novo passo com o projeto CoronaChoque e financeirização da educação brasileira, dessa vez buscando fazer um balanço do quadro das atividades educacionais durante a pandemia. Um resultado desta análise foi apresentado em agosto de 2021 no Dossiê O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois, publicado em três idiomas, onde a partir de entrevistas com militantes e especialistas conseguimos traçar um panorama dos principais impactos da pandemia na atividade educacional no Brasil.

A partir do acúmulo de informações levantadas, conseguimos mapear e sistematizar as principais tendências em curso na educação. Como buscamos demonstrar no artigo 7 teses sobre o presente e o futuro da educação brasileira, o que está ocorrendo é um agravamento de mazelas históricas. O texto identifica sete eixos a partir do qual isto ocorre: esvaziamento de projeto, desestruturação do sistema educacional, expansão do setor privado e mercantilização, parasitismo do setor corporativo, agravamento das desigualdades, simbiose entre educação e trabalho precário e desterritorialização e individualização do processo de ensino-aprendizagem. Ao mesmo tempo, mostramos que estes diferentes fatores atuam em unidade, onde somou-se à pandemia também a ascensão ao poder de forças reacionárias no Brasil, conformando um cenário de retrocessos inéditos. Por fim, em breve deve ser lançado pelo Instituto Tricontinental e pelo Front um artigo analisando os efeitos do CoronaChoque sobre as grandes corporações educacionais no Brasil e as respostas das mesmas a este novo cenário.

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Convidamos os leitores a consultarem estes materiais. É urgente discutir isso, especialmente agora que estamos vendo uma retomada geral das atividades presenciais. A decisão do setor privado e dos governos de reabrir as escolas, ignorando a gravidade da nova onda de contágios e mortes em decorrência da variante ômicron, tenta impor um discurso de volta à normalidade. Ao mesmo tempo, tenta-se responsabilizar os dois anos de pandemia e de ensino remoto pelos problemas que agora vão se tornando mais evidentes. Mas a verdade não poderá ser escondida, pois prosseguindo a atual correlação de forças prosseguirão também a evasão escolar, o analfabetismo, o subfinanciamento e o desmonte da educação pública, a imposição de um Novo Ensino Médio que agrava as desigualdades e a expansão das instituições privadas. Afinal, a causa real do problema não é o vírus, é o capital.

Publicado originalmente no Brasil de Fato.

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