O século 21 começa a ser construído

Anderson Barreto Moreira

Datas não definem a História, mas fazem parte dela. É provável que o dia 23 de fevereiro de 2022 marque não apenas o início de mais um conflito bélico, mas a passagem para a mudança estrutural no sistema mundial. Eventos dessa magnitude, como os ocorridos nas últimas duas semanas, exigem cuidados na análise, já que o risco de se deixar induzir pela guerra de informação é grande. Entretanto, é necessário o esforço de encarar a essência da questão.

O que se passa diante de nossos olhos é a mudança na arquitetura da ordem mundial iniciada em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial. Por quase meio século, Estados Unidos e União Soviética estabeleceram os marcos do regramento internacional em todas as esferas, não apenas no plano militar, como muitas vezes é apresentado. Ao contrário do que se imagina a Guerra Fria nunca foi uma disputa entre iguais. A URSS estendeu sua zona de influência primeiro nos países do leste europeu que libertou do jugo nazifascista e, nas décadas seguintes, apesar do apoio e referência que estabeleceu para as revoluções do século XX, o chamado “campo socialista” nunca foi superior ao bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos e aliados. Sempre com enormes dificuldades econômicas, a URSS conseguiu atingir um equilíbrio militar que lhe garantiu respeito e sobrevivência. Também atingiu a dianteira em várias áreas de alta tecnologia, como a aeroespacial, bem como na educação e cultura. Porém, isso nunca ocorreu de forma contínua e sustentada e, por múltiplos fatores, no início dos anos 1990 a primeira experiência de um Estado socialista deixou de existir.

A hegemonia dos Estados Unidos durante os 1990 e a crise político-ideológica na esquerda mundial desarmou boa parte da intelectualidade e organizações políticas de esquerda. O suporte, ou silêncio, à destruição dos Bálcãs pela OTAN com sua “guerra humanitária” é símbolo desse período. A teoria do imperialismo, como ferramenta de análise da realidade mundial, foi praticamente condenada à marginalidade. Em seu lugar, um conjunto de teorias “sofisticadas” prediziam um mundo onde, apesar das tensões e conflitos regionais, prevaleceriam os interesses econômicos e as guerras seriam apenas efeitos colaterais em países pouco “adaptados” a nova ordem mundial. Uma guerra em larga escala entre grandes potências pertencia ao passado. Que os ideólogos do capitalismo acreditassem nisso é compreensível. Entretanto, negar o imperialismo não impede que ele exista no mundo real. E é esse o ponto central da crise mundial que se desdobra nesse exato momento, não porque a Rússia seja imperialista, como propalado em muitas análises, mas porque o capitalismo em sua etapa imperialista engendra possibilidades de grandes guerras. Que o diga o século XX.

Durante as duas primeiras décadas do século XXI a ilusão da hegemonia perpétua dos Estados Unidos e aliados foi sendo minada pela ascensão de novas forças: Rússia e China em primeiro lugar, a primeira se reerguendo da debacle dos anos 1990 e a segunda realizando uma das mais espetaculares experiências em múltiplas esferas que a transformaram na maior potência do mundo. Mas também Irã, Índia e países da América Latina, África e Oriente Médio. Foram duas décadas de profundas mudanças onde a política internacional e as críticas ao status quo foram deixando de ser apenas palavras que na prática não impediam as agressões, e foram dezenas: Afeganistão, Iraque e Síria como exemplos da destruição. Em todas, as potências imperialistas foram derrotadas por forças locais, somadas ou não, ao apoio externo de Rússia, China e Irã, dentre outros, direta ou indiretamente.

O ultimato russo no início do ano, que cobrou por escrito o compromisso da OTAN em não se expandir ainda mais direção as fronteiras do país, “surpreendeu” apenas quem havia substituído a análise concreta da realidade pelo idealismo. Qual a surpresa nas exigências de potências mundiais em rediscutir as regras do jogo depois de quase 80 anos do último grande pacto? A Ucrânia nunca foi a questão central, muito menos o reconhecimento das Repúblicas do leste que desde 2014 não reconhecem os governos de extrema-direita em Kiev. O ponto nevrálgico sempre foi a não aceitação da Rússia a mesa como uma potência mundial. A negativa constante em atender a qualquer exigência de segurança por parte de
Moscou, a negativa de retirar os mísseis com capacidades nucleares instalados na Romênia e Polônia e o
armamento dos países do leste europeu e Bálcãs são o real motivo da guerra atual. A denúncia da “agressão russa” mal esconde a arrogância e indiferença com que EUA e União Europeia trataram o país até agora.

Até domingo, 20 de fevereiro, a possibilidade de solução diplomática ainda estava sobre a mesa. Por óbvio que Moscou se preparou por anos para um momento como este: “esta guerra começou há 8 anos”, disse Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia. Mas foi a Conferência de Segurança de Munique que deixou claro que não haveria negociações. Para que não esqueçamos: o presidente ucraniano, naquela ocasião, solicitou a entrada na OTAN, sanções imediatas sobre a Rússia e, inclusive, ameaçou adquirir armas nucleares. Daí em diante os fatos se desenrolaram em velocidade impressionante. Além disso, União Europeia e EUA ameaçaram abertamente o governo russo. No dia 21 de fevereiro a Rússia reconheceu as duas Repúblicas do leste ucraniano – Donetski e Luhanski, já incluído o apoio militar. Em discurso histórico, Putin deu um ultimato ao governo ucraniano: suspensão imediata dos ataques às duas repúblicas, garantia por escrito de não entrada na OTAN, desnazificação do regime ucraniano e neutralidade do país. A resposta foi a intensificação dos ataques por parte do exército ucraniano.

Em 23 de fevereiro foi ordenada a operação militar russa com no mínimo três objetivos claros até agora: liberar a região das duas repúblicas recém-criadas, destruir as capacidades militares do regime ucraniano e remover e desnazificar o governo atual. Até agora, a Rússia mantém sua posição de que não anexará o país como todo, porém, algumas partes certamente serão retiradas da Ucrânia, principalmente no leste e na região do Mar Negro. A Ucrânia segue espantada com o abandono do Ocidente. Ao que parece, contavam que suas ações seriam suportadas militarmente já num primeiro momento. Após um primeiro choque, que demonstrou a incapacidade e desmoralização do ocidente diante das mudanças em curso, um caminho perigoso começou a ser trilhado. A narrativa ocidental tem colocado a Rússia e Putin como os maiores agressores desde a Alemanha nazista. É claro que não cabe elogios ou defesa pessoal ao atual presidente russo, entretanto, a História não é uma luta entre o “bem e o mal”. Após sanções iniciais pífias, União Europeia/OTAN e Estados Unidos parecem ter ligado o modo “decisões alucinadas”. Bloqueio aéreo total para aeronaves russas na Europa, desligamento de parte dos bancos russos do sistema financeiro internacional de trocas – o Swift – e o suporte militar, via Polônia, para a Ucrânia. Tudo isso no mesmo dia em que Putin colocou em alerta máximo as forças de dissuasão nuclear do país. Uma mesa de negociações foi aberta, ainda sem resultados até o fechamento desse artigo. Isso tudo em apenas 4 dias de guerra, onde o avanço fulminante das forças russas em solo ucraniano os colocaram as portas da capital, Kiev. Ainda é cedo para qualquer exercício de prever até a guerra atual escalará. As possibilidades de uma confrontação com a OTAN têm crescido a cada dia e, em situações como essa, o controle das variáveis se torna impossível.

Uma era chega ao seu fim e outra se abre no sistema mundial capitalista. Os alcances dos eventos
atuais ainda estão por vir. A Rússia apenas parece ter aberto a porta para reordenar o mundo. Imaginemos como isso impactará disputas como China e Taiwan, Coreias do Sul e do Norte, dentre tantos outros. Que não sejamos mais surpreendidos pela lógica imperialista. Que sejamos capazes de ir além apenas de escolher lados. Que possamos denunciar que não haverá paz enquanto perdurar a ordem do capital.

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