Ciência, política e isolamento social em tempos pandêmicos

Vanderlei Franck Thies
Dr. em Desenvolvimento Rural e integrante do GEPAD/UFRGS

Estamos na Europa. O ano é 1609. Depois de aprimorar telescópios existentes, Galileu Galilei (1564 – 1642) mira o céu com seu perspicilli. As consequências desse ato marcaram profundamente a história humana. Dias e dias de trabalho, na construção desse novo e mais potente instrumento de observação, são seguidos por longas horas de contemplação dos corpos celestes. Em diálogo com as ideias de outros pensadores, recolhido em seu observatório, Galileu vive numa espécie de “isolamento social”.

Com base nessas observações, em 1610, o pesquisador florentino leva a conhecimento público suas descobertas. Estarrecedoras descobertas! Entre outras, a de que a lua, tão suave e amena ao olho humano, ao contrário das aparências e do que se tinha como verdade à época, não possuía superfície lisa e polida. Ela era áspera e rugosa. Possuía abismos profundos e montanhas enormes, igual a terra. Igualar terra e lua, à época, para poderosas forças políticas, equivalia a uma declaração de guerra.

As observações de Galileu sacudiram fortemente as bases cambaleantes da teoria geocêntrica. Tida como dogma, essa era uma das ideias basilares que sustentava toda a estrutura de poder instituída. Questioná-la, como o fizera Copérnico cerca de um século antes, era questionar todas as relações de poder e domínio estabelecidas. Um ato de independência intelectual bastante arriscado! Giordano Bruno (1548 – 1600), frade dominicano, também o fizera e, por isso, fora julgado e morto na fogueira da inquisição. Com isso se aprende que a ousadia de questionar as aparências e os poderes constituídos nunca vem desacompanhada de certa dose de perigo.

As descobertas de Galileu afetaram profundamente a Europa, que vivia um momento histórico de pulsantes transformações. Elas contribuíram para a abertura de um caminho que, penosamente ao longo dos séculos seguintes, vem sendo construído pela humanidade. O caminho da ciência. Ainda que Galileu agradecesse a força divina, como a fonte de sua inspiração intelectual, suas ideias contrariavam frontalmente dogmas da Igreja. Foi condenado a abjurar publicamente, seus livros censurados e suas ideias proibidas. Abjurou para viver, mas permaneceu em prisão domiciliar, numa nova forma de “isolamento social”.

Os tempos pandêmicos que vivemos geram estranhamento e desconforto generalizado. Isso decorre da forte redução do contato com os outros, o que solapa uma das bases daquilo que nos torna humanos, que é o convívio social. Todavia, parece que entre os iniciados na ciência, os cientistas, como Galileu, por ser parte do cotidiano, o estranhamento causado pelo “isolamento social” tende a não ser tão impactante.

Fazer ciência é buscar a verdade para além da aparência das coisas, ainda que afronte o senso comum. É buscar a essência dos fenômenos, com base em observação sistemática, com uso de conceitos e métodos precisamente definidos, ainda que afronte interesses poderosos. Fazer ciência, como tudo na vida, implica dedicação. Fazer ciência implica longos períodos de leitura, muitos deles em confinamento intelectual, para apropriar-se do conhecimento já produzido por pesquisadores contemporâneos, ou por aqueles que nos antecederam. É reconhecer que somos continuadores de uma grande obra coletiva, que é o conhecimento humanamente produzido. É reconhecer, também, que as verdades científicas são históricas e, portanto, sempre sujeitas a atualizações.

Longas horas para construir problemas de investigação, delimitar objetos de estudo, construir experimentos, tabular dados, transcrever entrevistas, triangular informações, selecionar e analisar variáveis, apresentar os resultados e submetê-los à prova e à crítica de seus pares e do conjunto da sociedade. Fazer ciência implica certos níveis de isolamento do conjunto da sociedade, para se dedicar a um campo específico do saber. Alcançar o reconhecimento científico de uma nova tese, produzir novos conceitos, novas abordagens teóricas, gerar novas técnicas, produzir novas recomendações práticas, em qualquer área da ciência, é resultado de árduo e longo tempo de dedicação. Nessa conta não se pode esquecer o tempo dedicado à verificação de hipóteses que são negadas, aos experimentos frustrados, etc.

Como Galileu, aprimorando seu telescópio, ou observando as estrelas, há séculos muitos têm se dedicado a construir novos conhecimentos, com base na observação e análise sistemática dos fatos. Dedicado tempo para identificar problemas, investigar e compreender suas causas e propor soluções. Não se trata de endeusar a ciência, de pregar sua onipotência, ou menosprezar outras formas de conhecimento. Tampouco deixar de imbricar a ciência das inescapáveis disputas de poder de cada época, ou defender uma suposta neutralidade. A ciência se faz em tempos concretos, em circunstâncias objetivas, onde diferentes interesses disputam os rumos sociais.

Os tempos de isolamento social em que vivemos no mundo e, de forma muito específica (infelizmente!) no Brasil, parecem reprisar eventos de alguns séculos atrás. Influentes organizações e sujeitos poderosos negam abertamente a força de consensos produzidos pela comunidade científica internacional. Seja através da oferta de imunidade, ou cura, em troca de filiação religiosa, ou da irresponsável minimização dos potenciais efeitos da disseminação do vírus.

Para além da rotineira dedicação aos temas de pesquisa, esses eventos cobram dos cientistas uma reflexão sobre a relação entre ciência e política. Cabe perguntar: o que diferencia a atual polêmica que tem, de um lado, o Presidente da República e seus aliados políticos e, do outro lado, a Organização Mundial da Saúde e um enorme contingente de cientistas do mudo todo, da polêmica estabelecida entre os políticos da época e Galileu? Guardadas as devidas proporções, parece a reedição da mesma contenda!

A bipolaridade do atual governo federal, expressa no conflito do discurso do Presidente da República e a orientação do seu Ministro da Saúde (que ainda segue titular da pasta enquanto esses parágrafos são esboçados), mostram que o consenso da comunidade científica em relação ao que deve ser feito, felizmente tem eco em parte do governo federal, apesar da franca negação do Gabinete do Presidente.

O adjetivo “gripezinha” não é apenas o diminutivo de uma equivocada caricatura da situação causada pela Covid-19, ou apenas uma figura aleatória usada no discurso político. Trata-se de uma postura, clara e decidida, de negação das evidências científicas. Isso é fato!

Frente à gravidade do que representa essa negação, cabem algumas especulações: que outras falsas ideias serão alçadas à condição de verdade para não contrariar interesses econômicos e políticos? Na contenda brasileira entre política e ciência, haverá abjuração, a exemplo do que fez Galileu? Ou, nas fornalhas da disputa política, arderá alguém em chamas, a exemplo de Giordano Bruno?

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