Juliane Furno: “Não tem caminho para o desenvolvimento de uma nação, se abandonamos a indústria”

A segunda entrevistada da série sobre desindustrialização é a economista Juliane Furno, doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, formadora da CUT e militante do Levante Popular da Juventude.

Hoje fala-se muito em economia de serviços e de um novo ciclo econômico baseado no uso do aprendizado de máquinas. Há ainda possibilidade histórica dentro do capitalismo para um novo ciclo de industrialização no Brasil? Ou no estágio de desenvolvimento atual é necessário abandonar esta referência e o pensar um outro parâmetro de desenvolvimento?

Nós falamos que uma sociedade é industrializada quando o capital industrial subordina os demais. Não quer dizer que seja uma sociedade sem serviço, sem agricultura, sem mercado financeiro, mas que o capital industrial não é superior apenas em termos numéricos, mas ele subordina os demais, ou seja, os serviços estão vinculados à indústria, o capital bancário também.

É normal que sociedades desenvolvidas comecem a passar pelo processo de desindustrialização. Então teríamos duas dimensões da desindustrialização. Uma do ponto de vista da maturidade de algumas economias, que já produziram a quantidade de bens e serviços, principalmente mercadorias e bens de consumo que aquela sociedade já usa. Por exemplo, nos Estados Unidos, com a economia que de alguma forma está se desindustrializando, isso não é necessariamente um elemento ruim, porque o americano tem acesso à geladeira e a outros bens de consumos produzidos pela indústria em grande quantidade. Essas economias rumam para os serviços por uma maturidade do setor industrial, que vai exigir os serviços mais especializados, uma dimensão tecnológica da incorporação do progresso técnico que não está necessariamente na indústria, embora tenha uma vinculação.

Agora, é uma situação muito diferente da realidade dos países latino-americanos, como o Brasil, que tem passado por um processo de desindustrialização, ou seja, que outras frações do capital têm conseguido subordinar o capital industrial sem que nós tenhamos atingido um período de maturidade.

Então, podemos dizer que nos anos 60, principalmente com a ditadura militar, ou a partir do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, entre 1974 e 1979, estávamos conseguindo fazer o que se chama de internalização dos centros de decisão ou de internalização do departamento de bens de capital. Então, uma economia é industrializada, primeiramente, quando ela tem o processo de substituição de importações. No caso das economias latino-americanas, começa substituindo a importação pela fabricação desses mesmos produtos locais. Mas também quando consegue dominar outras etapas da cadeia produtiva. No nosso caso, depois partimos para o setor de insumos na siderurgia, petroquímica, energia e, no terceiro momento, com os bens de capital. E, a partir dos anos 1980 com a crise da dívida e, nos anos 1990 com a fórmula do Plano Real, vamos perdendo estes elos da cadeia produtiva, vamos nos desindustrializando, ou seja, a indústria vai perdendo a centralidade no processo de acumulação e desenvolvimento em contraposição aos serviços. Acontece que o setor de serviços no Brasil não tem esses elementos vinculados ao setor industrial, não são vinculados ao maior desenvolvimento tecnológico e incremento de produtividade. Eles são serviços pessoais, de baixo valor agregado, em que as pessoas recebem salários mais baixos, que precisam de menos qualificação profissional, logo também se tem menos incremento de produtividade. Não tem movimento da educação e da qualificação. E isso é muito ruim para a economia. Então estamos virando uma economia de serviços, de baixos serviços ou, considerando até o peso do setor agrícola, mas não em termos de emprego, de valorização do produto ou de incremento da renda. Não é um elemento positivo. E não existe nenhuma experiência de país que tenha superado a condição de subdesenvolvimento sem que tivesse passado por um processo muito induzido, articulado pelo Estado, de industrialização. Acho que o exemplo mais significativo é a Coreia do Sul, que é o único país do nosso tempo que conseguiu modificar essa posição estrutural do subdesenvolvimento. Então, acho que não tem caminho para o desenvolvimento econômico de uma nação, para a independência econômica e a soberania política e tecnológica, se a gente abandona a indústria.

A indústria é o elemento de uma economia com maior efeito multiplicador, ou seja, um emprego industrial gera mais ou menos cinco vezes mais empregos. Porque cria serviços mais especializados, ajuda na circulação de renda. São os empregos mais qualificados e ela demanda de outros setores também. Por exemplo, a indústria da construção civil, mesmo que seja de baixo valor tecnológico, demanda matéria-prima, demanda muita mão-de-obra. Um mestre de obras da construção civil de grandes empreendimentos ganha muito mais do que um pedreiro de pequenos reparos domiciliares. Ela tem condições de aumentar o nível geral de renda de uma sociedade, fornecer produtos a preços mais competitivos, enfim, criar esse efeito multiplicador da geração de renda, adição do produto, maior valor adicionado.

E quando a gente fala em colocar indústria na pauta do desenvolvimento, não quer dizer em hipótese alguma essa concepção atrasada de indústria. Não significa mais poluição ambiental, não é mais uma enxurrada de mercadorias desnecessárias, de estímulo ao consumismo… Há vários países europeus, vários movimentos que inclusive pregam crescimento zero, que ninguém precisa crescer mais, mas sim redistribuir a renda. Isso é muito diferente das economias latino-americanas – e a brasileira em especial – porque nós precisamos de crescimento econômico. Quando falamos em indústria, é essa indústria da terceira e quarta Revolução Industrial, não a indústria do motor à combustão. Quando falamos em indústria parece uma coisa meio arcaica do desenvolvimentismo a qualquer custo. Não, é desenvolvimento socialmente sustentável, que respeita as populações tradicionais, que cria uma relação entre a produção e consumo dessas mercadorias, ou seja, que faça sentido para a população e o nosso mercado interno.

Sabemos que hoje as cadeias produtivas são internacionais. Quais são as possibilidades, as implicações políticas e o papel do Estado nacional brasileiro numa possível retomada do desenvolvimento industrial?

Pensando no acordo da União Europeia-Mercosul, estamos falando de um acordo em que uma economia vai fornecer carne e soja, produtos com baixo valor adicionado, pouca industrialização, pouca adição de valor e nós vamos importar chip, carro, etc. Com essa discrepância, isso é aprofundar a dependência econômica e tecnológica de uma nação.

Os economistas desenvolvimentistas já diziam que isso tem uma tendência estrutural de intercâmbio desigual dos termos de troca que resulta em três problemas relativos a transferência de valor. O primeiro é que as economias que se especializam na exportação de produtos primários tendem a distribuir o valor em termos de salário produtividade que se transfere das economias periféricas para as economias centrais. Existe uma tendência a que o preço das manufaturas suba em contraposição o preço das matérias-primas ou permaneça estável ou decresça. Um celular, por exemplo, antes custava R$ 300 e hoje os celulares bons custam R$ 1000. Então, existe uma tendência, com incremento tecnológico da produtividade, que essas mercadorias manufaturadas industrializadas tenham um acréscimo de valor. Ou seja, elas custam bem mais caro. E há uma tendência de que os produtos semi-industrializados ou não industrializados ou permanecem com o mesmo valor ou caiam. Porque está muito ligado com oferta e procura. Então, com qualquer crise internacional, os países centrais optam por não comprar mais café brasileiro, soja, e aí como eles não estão demandando tanto e temos muito estoque, o preço cai. Então, também tem uma transferência de valor com os nossos produtos tendendo a perder valor no mercado internacional.

E, por fim, o terceiro elemento mais importante desse intercâmbio desigual tem a ver com a dependência econômica. Ou seja, é possível que uma nação industrializada opte, em período de crise, por apertar os cintos, parar de importar produto primário e substituir por outro que tenha alta substituição ou mesmo passar a produzir café no seu território. É muito diferente com os países periféricos, semi-industrializados ou em desindustrialização encaram uma crise econômica, porque a nossa relação no processo de crise é só passiva, não optamos por traçar uma política econômica de combate a uma crise. Nós somos reféns de crises econômicas, à medida que os países optam em demandar menos produtos nossos, ficamos reféns do comércio internacional, das crises econômicas, da forma cíclica, inclusive de como o capitalismo costuma entrar em crise. Isso seria um terceiro problema de porque se especializar nas vantagens comparativas em termos agrícolas traria problemas para uma nação.

Eu acho que o processo de inserção nas cadeias globais de valor é irreversível. O que está na alçada do Estado nacional – por isso ele tem um papel muito importante – é de garantir através, por exemplo, das Universidades, dos centros de pesquisa, um processo intencional de desenvolvimento, aprimoramento técnico e tecnológico de especialização. Para que a gente se insira nas cadeias globais de valor menos como montador de produto final. Hoje, nós montamos o celular, isso não quer dizer que nos apropriamos de nenhuma parte do processo produtivo, nem o marketing nós fazemos localmente. Para que possamos nos inserir de forma mais qualificada, e isso é papel que a nossa a burguesia, pelas características da classe dominante, não vai levar adiante, justamente porque não tem um projeto de desenvolvimento nacional, não é uma burguesia nacionalista, não resolveu a equação nacional. Isso só o Estado teria condições de fazer. E não em disputa com o setor privado. Pelo contrário, para criar as condições do próprio desenvolvimento do setor privado, o Estado precisa lançar à frente, colocar à disposição as suas universidades e centros de pesquisas para desenvolver a tecnologia para melhorar a posição do país no cenário internacional e agregar mais desenvolvimento local.

3 comentários sobre “Juliane Furno: “Não tem caminho para o desenvolvimento de uma nação, se abandonamos a indústria”

  1. Oscaldo Dias dos Santos Filho disse:

    Excelente matéria!! Nos mostra outra dace do capitalismo – o limite e um novo começo com maior valor agregado..!

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