Mathias Seibel Luce: “ É preciso construir a necessária unidade da esquerda por um novo ciclo político no país que leve a uma alternativa de poder”

O último entrevistado da da série sobre industrialização e projeto para o Brasil é Mathias Seibel Luce, Professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, autor de Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias (Editora Expressão Popular, 2a reimpressão) e integrante do Front.

Hoje fala-se muito em economia de serviços e de um novo ciclo econômico baseado no uso do aprendizado de máquinas. Há ainda possibilidade histórica dentro do capitalismo para um novo ciclo de industrialização no Brasil? Ou no estágio de desenvolvimento atual é necessário abandonar esta referência e o pensar em um outro parâmetro de desenvolvimento?

Penso que é necessário outro parâmetro de desenvolvimento. Nele, a indústria seguirá sendo importante. Só nas mistificações das teorias pós-modernas e da ideologia neoliberal vivemos em sociedades “pós-industriais”. Mas é preciso urgentemente construir outro modelo produtivo. De fato, mesmo o incremento da participação relativa dos serviços na composição setorial do PIB e do emprego se dá no âmbito de sistemas produtivos integrados. Os países e corporações que recebem rendas de conhecimento (royalties) pelo controle de tecnologias, não o recebem por mero “rentismo”, mas devido a seu poder tecnológico, por controlarem as pautas da produção e acumulação mundiais, não havendo desaparecimento da indústria, mas sua nova reconfiguração, que é a IV Revolução Industrial. Estamos diante de um novo padrão de competitivade do capitalismo mundial com reflexos nas formas e espaços da produção de riqueza e utilização das forças produtivas, incluindo a principal força produtiva que é a força de trabalho, mas também a natureza, com a apropriação voraz dos recursos naturais. Nesse estágio de desenvolvimento, duas tendências exigem resposta urgente: as feições ainda mais destrutivas assumidas pelo capitalismo e o novo caráter da dependência com seu ímpeto ainda mais superexplorador, os dois se acometendo sobre nossos povos. Nos anos 1950, se acreditava que a industrialização por si só traria a saída para as mazelas de nossas sociedades. Mas as contradições persistiram. E se agudizaram no capitalismo dependente latino-americano, inclusive em um país como o Brasil. Hoje, não podemos repetir o erro de apostar, nem esperar uma saída com base na receita do desenvolvimentismo e suas variantes neo. É preciso outro modelo produtivo. A bandeira das lutas por reformas a favor dos trabalhadores e das maiorias oprimidas se mantém atual, mas somente quando articuladas com a perspectiva de politizar a sociedade para formas superiores de luta, para lograr mudar o caráter de nossa economia (ou formação econômico-social, mais exatamente). Precisamos de outro conteúdo para a indústria. Em lugar da agenda das entidades patronais e dos poderes dominantes retirando direitos, ampliando o desemprego estrutural e fazendo as pessoas trabalharem até morrer, uma agenda que crie condições de sustento em que todos tenham trabalho e trabalhando menos; em lugar da indústria de transportes baseada no transporte individual de passageiros e no modelo rodoviarista, a primazia do transporte coletivo de massas e modais eficientes; em lugar da agroindústria afogada em venenos causadores de doenças graves, que são um verdadeiro problema de saúde pública, uma agroindústria que eleve a produtividade sobre a base da produção agroecológica; em lugar da aceitação inexorável da dependência tecnológica nos segmentos de alta e média-alta tecnologia e em lugar da dilapidação, inclusive, de empresas públicas estratégicas como a Petrobras e o BNDES, uma efetiva política soberana que direcione a riqueza socialmente produzida e as capacidades de poder do Estado brasileiro a serviço de outros objetivos. Mas estes outros horizontes só serão possíveis com outro projeto político no país, que derrote o ultraliberalismo com face neoconservadora e que supere também as armadilhas do desenvolvimentismo.

Que tipo de possibilidades a ascensão da China como centro de um novo polo de acumulação no oriente abre para a retomada da industrialização no Brasil?

Essa é uma questão que precisa ser vista no seu aspecto contraditório. Por um lado, a expansão da acumulação de capital a partir da China tem gerado uma nova voracidade pela apropriação de terras e no investimento externo via fusões e aquisições, com reflexos em países como os nossos (como demonstram, respectivamente, os estudos de Gustavo Lima Torrres Oliveira e de Ana Garcia). Se olharmos o perfil das trocas comerciais entre Brasil e China, veremos que ali também há um padrão de intercâmbio desigual. As exportações brasileiras para a China concentram-se em soja, minério de ferro e petróleo bruto, enquanto o país importa produtos manufaturados como máquinas e equipamentos. Nesse sentido, a persistência dessa pauta de relações não favorece a superação da dependência no Brasil e deve ser modificada, buscando outros marcos para as relações bilaterais e multilaterais com o gigante asiático. Por outro lado, a ascensão da China como potência mundial, na medida em que coloca constrangimentos à atuação irrestrita do grande imperialismo estadunidense, abre um novo cenário no século XXI. Não é por menos que a Estratégia de Segurança Nacional do governo Trump identifica a China como adversário principal. De fato, está em curso um processo de transição hegemônica no espectro do século XXI, após os EUA terem experimentado sua supremacia durante décadas. Para essa quadra histórica ser aproveitada em favor da classe trabalhadora, é necessário que em países como o Brasil as forças da esquerda logrem implacar governos anti-imperialistas (sempre lembrando que o anti-imperialismo consequente deve necessariamente enfrentar o sistema do capital), que atuem pela tranformação do modelo produtivo e por uma efetiva integração soberana dos povos. É tarefa nossa nos opormos ao imperialismo estadunidense e seus planos de controle da região, como bem destacou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães em seu recente artigo “A Operação Lava Jato e os objetivos dos Estados Unidos para a América Latina e o Brasil”. Ao mesmo tempo, nessa conjuntura mundial inaugurada pela ascensão da China (e o conflito com o poder dos EUA, que não cederá pacificamente à perda de seu domínio), não podemos deixar de considerar que o mundo que está aí é regido por relações capitalistas. Assim, rechaçar o alinhamento automático aos EUA preconizado pelo bolsonarismo é um primeiro passo. Mas também é preciso reconhecer que há uma relação de cooperação antagônica entre a potência dominante em desgaste e a potência ascendente. Um governo anti-imperialista no Brasil, cenário a ser alcançado pelas forças sociais críticas, deverá incidir sobre essa realidade, buscando uma inserção soberana. Sob outros preceitos, deve-se utilizar o espaço de fóruns multilaterais como o BRICS para pensar áreas de cooperação que contribuam para a multilateralização do poder mundial e o desenvolvimento de tecnologias alternativas voltadas para os problemas de nossas sociedades e não para alimentar a fome vampiresca por lucros de grandes corporações e seus sócios locais. Nesse projeto, o Brasil deverá colocar suas forças produtivas a serviço das necessidades e dos interesses da classe trabalhadora e da grande massa do povo. E alianças geopolíticas em aspectos onde houver convergências de interesses será um caminho importante, mas nunca descuidando do sentido crítico.

Sabemos que hoje as cadeias produtivas são internacionais. Quais são as possibilidades, as implicações políticas e o papel do Estado nacional brasileiro numa possível retomada do desenvolvimento industrial?

A colocação da pergunta é bem importante. As cadeias produtivas são internacionais. O que não significa que elas não tenham sua direção em determinados centros de poder, que controlam as principais tecnologias, as moedas com função de reserva na economia mundial, bem como os fluxos internacionais de capitais. O Estado nacional brasileiro, na condição de Estado dependente, é um Estado subsoberano. Mas não um Estado subsoberano qualquer, devido a seu caráter subimperialista. Isto coloca desafios adicionais do ponto de vista das transformações que devem ser encaradas. Por outro lado, representa maiores potencialidades uma vez que se enfrente a questão do poder. O Brasil tem as condições de liderar um processo de larga envergadura na América Latina. Mas para isso precisamos ir à raiz da questão. Discordo das caracterizações sobre desindustrialização que utilizam esse termo em sentido categórico. Melhor é falarmos em incremento da dependência – em suas distintas formas: comercial, financeira, tecnológica… Em que pesem os efeitos deletérios do novo padrão exportador de especialização produtiva na fase da integração financeirizada entre mercado de crédito e mercado de títulos – e eles são muitos -, o Brasil possui, ainda, o maior parque industrial da América Latina e o maior contingente de força de trabalho na região ocupada na indústria de transformação. Possui uma comunidade de cientistas qualificada, a qual vem resistindo a duras penas aos ataques desferidos, agora com mais um intento de cooptar parte de seus quadros para a lógica privatista, como no eventual programa Future-se, do governo federal, reforçando aquilo que Roberto Leher chama de a heteronomia da Universidade Brasileira no capitalismo dependente. Seja como for, não regredimos, como sugerem alguns autores, à condição de neocolônia, não se justificando quaisquer alianças com uma dita “burguesia nacional”, que não teve no passado e muito menos tem hoje um projeto nacional consequente, questionador da condição subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho.
Falar em retomada do desenvolvimento industrial em abstrato pode levar a crer que há uma convergência de interesses entre as entidades patronais da indústria e os trabalhadores, que haveria um campo comum com os grandes capitalistas pela soberania do país. Quando não há. Essas mesmas entidades apoiaram o golpe de 2016, aderiram à candidatura Bolsonaro quando outros nomes preferidos pela burguesia paulista não decolaram e estão defendendo a contrarreforma da previdência, a aplicação da contrarreforma trabalhista, a expansão da barbárie no campo e, até mesmo, a venda de fatias de empresas estratégicas como a Petrobrás. Mesmo que existam internamente disputas entre diferentes frações do capital (em torno do nível da taxa de juros, em torno da taxa de câmbio, em torno do quinhão que cada uma levará em subsídios e renúncias fiscais ou mesmo em torno da retórica belicosa do governo), há uma agenda do empresariado brasileiro que é a de aceitar, explícita ou tacitamente, a dependência tecnológica do país, acreditando que a implementação do novo padrão de competitividade da IV Revolução Industrial se coaduna naturalmente com mais abertura comercial e integração ao capital estrangeiro, processo no qual buscam se alçar como sócios locais. Não é à toa que quem assina a apresentação do livro de Klaus Schwab (diretor do Fórum Econômico Mundial) sobre a chamada “indústria 4.0” é o empresário João Dória, um dos nomes postulados para a continuidade do regime e personagem incapaz de apresentar uma única medida para um projeto soberano de país. Como dizia Ruy Mauro Marini, há uma relação de cooperação antagônica entre as diferentes frações da burguesia brasileira e no seu relacionamento com os poderes imperialistas. Mas elas não colocam em risco seu privilégio de classe para alcançar uma verdadeira independência, pois nesse caminho colocariam em risco o sistema de dominação que as sustenta. Em momentos de crise de acumulação, prevalece a unidade entre as distintas frações, jogando o custo da crise nas costas do povo. Hoje, atravessamos mais um desses momentos. A resposta que os trabalhadores e a esquerda devem dar é construir a necessária unidade em seu campo, por um novo ciclo político no país que leve a uma alternativa de poder, que é urgente. Nessa alternativa de poder, a palavra de ordem no debate econômico deve ser construir outro modelo produtivo, em que a indústria será reorientada por outros preceitos, buscando a soberania nacional e popular no país, pensando transformações estruturais para colocar as forças produtivas a serviço das necessidades das grandes massas, o que exige pensar uma sociedade além da lógica da mercadoria. E isto passa por encaminhar de maneira consequente a tríade constituída pela questão social, a questão nacional e o internacionalismo.

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